Apesar da lei avançada, Brasil custa a adotar neurodiversidade no trabalho

Inserção da pessoa com TEA no mercado é diretriz da política nacional, e multinacionais da Informática provam que prática é lucrativa
São direitos da pessoa com TEA o acesso tanto ao ensino profissionalizante quanto ao mercado de trabalho (Imagem: Anne Spratt/Unsplash)

Inserção da pessoa com TEA no mercado é diretriz da política nacional, e experiência de multinacionais da Informática prova que prática é lucrativa

Aos 26 anos de idade, Marina Amaral tem um portfólio de profissional madura. Filha de uma historiadora, Marina descobriu bem cedo o gosto por uma arte que ela praticamente criou a partir do material de trabalho da mãe – a colorização de fotografias antigas em preto e branco -, e com isso ganhou o mundo. Literalmente.

Dona de um website em língua inglesa que é a vitrine do seu trabalho, Marina assina parcerias com museus e instituições como o History Channel, o New York Times, a People Magazine, o Memorial Nacional de Paz e Justiça no Alabama e o Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau – com o qual assinou o livro de fotografias Faces of Auschwitz, uma homenagem às vítimas do holocausto nazista.

Ao colorir mais de 100 fotos para o documentário Billie, do diretor James Erskine sobre a genial Billie Holyday, ela também deu um passeio pela indústria do cinema. Marina, mineira de Belo Horizonte, é portadora de Transtorno do Espectro Autista (TEA).

E é também um ponto fora da curva. A estimativa das ONG’s que se dedicam no Brasil ao tema do TEA é de que pelo menos 80% dessa população com idade acima dos 18 anos é desempregada – o que pode significar um contingente de nada menos que 1,4 milhão de brasileiros, já que os portadores de transtornos do espectro autista no país somam um número estimado em 2 milhões.

E falar em estimativa também tem a ver com a falta histórica de dados estatísticos: somente em julho de 2019 a promulgação da lei 13.861/19 obrigou o IBGE a inserir no Censo perguntas sobre o autismo – e, com isso, o órgão poderá enfim colocar nas mãos do Poder Público os dados que permitirão elaborar políticas efetivas em benefício dessa parcela da sociedade.

Mas a proporção, pequena, de adultos com espectro autista no mercado de trabalho é reveladora de que algo ficou no caminho quanto se trata de cumprir nossa legislação.

Sim, porque a lei 12.764/2012, que criou a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, estabelece claramente, em um dos incisos do seu artigo 2°, que “o estímulo à inserção da pessoa com transtorno do espectro autista no mercado de trabalho” é uma das diretrizes da política nacional.

E, logo em seguida, o artigo 3° da mesma lei impõe que são direitos da pessoa com TEA o acesso tanto ao ensino profissionalizante quanto ao mercado de trabalho.

Mas não é só isso. Como o TEA foi incluído na lei 13.146/2015, que é o Estatuto da Pessoa com Deficiência, os portadores do espectro autista também se beneficiam das cotas afixadas em nossa legislação.

Por exemplo, a lei 8.112/90, que rege o serviço público federal, assegura às pessoas portadoras de deficiência o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargos, e obriga as instituições públicas a contratarem essas pessoas para ocupar, no mínimo, 20% das vagas.  

lei 8.213/1991, por seu turno, estabelece em seu artigo 93 que qualquer empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiências.

Além disso, essa lei impõe que a dispensa de pessoa com deficiência ou de beneficiário reabilitado da Previdência Social ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a dispensa imotivada em contrato por prazo indeterminado, somente poderão ocorrer após a contratação de outro trabalhador com deficiência ou beneficiário reabilitado da Previdência Social.

A diversidade é lucrativa

Para além da legislação, o fato de que um ambiente de trabalho diverso é benéfico não só para as equipes mas também para o caixa das empresas está longe de ser uma novidade.

Pesquisa de Josh Bersin constatou que as empresas inclusivas têm 1,7 vezes mais chances de serem líderes em inovação em seu mercado; a Harvard Business Review descobriu que equipes diversas são capazes de resolver problemas mais rapidamente do que um time formado por pessoas cognitivamente semelhantes.

E, principalmente, conforme constatou a McKinsey & Company – consultoria global de gestão que conduziu pesquisa com 180 empresas na França, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos – empresas com maior diversidade no alto escalão também têm desempenho financeiro mais alto.          

Gigantes mundiais da Informática como a SAP e a Microsoft, fascinadas pelas habilidades específicas e frequentes nas pessoas com TEA, chegaram a criar programas especiais para atrair essa mão de obra.

A SAP tem o Autism at work desde 2013, quando se deu conta de que as qualidades do trabalhador com TEA se encaixavam como uma luva no perfil de várias áreas da empresa: excelente capacidade de concentração, habilidades visuais proeminentes, talento para atividades repetitivas e para dedicar-se a tarefas metódicas; grande capacidade para compreender e lembrar de regras, padrões e conceitos concretos, memória de longo prazo – sobretudo para fatos e estatísticas -, adesão às normas, honestidade.

A SAP cunhou o termo “neurodiversidade no ambiente de trabalho”, e foi seguida pela Microsoft, que em 2015 criou o Microsoft Autism Hiring Program e através dele vem contratando um número crescente de funcionários com TEA, em especial engenheiros de software e analistas de dados.

As iniciativas das duas gigantes abriram os olhos de outras empresas, e o resultado é uma busca crescente por trabalhadores com as habilidades, padrão de raciocínio e ética laboral que são comuns entre as pessoas do espectro autista.

Empregar pessoas com TEA é benéfico também para o Erário. Segundo a ONG especializada Spectrum, uma análise feita em 2017 na Austrália constatou que colocar apenas 100 pessoas com autismo para trabalhar em tempo integral por três anos geraria quase 3 milhões de dólares australianos em benefícios fiscais e pouparia ao país cerca de US$ 4 milhões em pagamentos e serviços de assistência social.

Apesar de engatinhar no tópico, uma ou outra iniciativa vem surgindo no Brasil. A ONG dinamarquesa Specialisterne abriu escritório em São Paulo com o objetivo de ajudar empresas a buscar, selecionar e contratar pessoas com TEA.          

Para saber mais sobre o TEA, além do website da Specialisterne você pode acessar a página da Associação de Amigos dos Autistas (AMA) – a mais antiga do Brasil, fundada em 1983 -, e da Autismo e Realidade, entre outras fontes de informação.

Neste outro artigo do meu blog, você poderá ler um pouco mais sobre os direitos das pessoas com TEA.

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