A pobreza menstrual e essa mania de “ou, ou”

Uma entre cada quatro meninas brasileiras deixa de ir à escola durante o período menstrual por simples falta de acesso a um absorvente, segundo a ONU
Por recorrerem a materiais inapropriados para conter o sangramento, meninas e mulheres ficam sujeitas a alergias e irritações, infecções urogenitais e até à Síndrome do Choque Tóxico, que pode levar à morte (foto: Burin Kul/Pixabay)

Sim, a desigualdade de gênero é um fato no Brasil, então precisamos falar sobre a pobreza menstrual.

Vou nem fazer arrodeios: nenhum governo deveria ter que escolher entre fornecer absorvente, combater uma pandemia ou colocar arroz na cesta básica. Por favor.

O orçamento nacional há vários anos morde a casa do trilhão. São as prioridades de alocação desses recursos – oriundos dos impostos pagos por cidadãos, empresas e indústrias (entre outras fontes) -, que definem o tipo de gestão sentada no Planalto Central.

O que a gente escolhe é o sabor do picolé no isopor do sorveteiro da praia.

Fornecer absorvente a mulheres e meninas pobres, combater a pandemia da Covid-19 e garantir a segurança alimentar da população são obrigações constitucionais do Poder Público: estão estabelecidas em lei, e têm que ser cumpridas TODAS elas.

O artigo terceiro, inciso três, da nossa Constituição Federal estabelece que são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

O inciso quatro do mesmo artigo acrescenta os objetivos de promover o bem de todos – sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Já o artigo 23 da mesma Carta Magna, a lei maior do país, determina que são competências comuns da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública; combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.

O artigo 34, incisos 12 e 15, decreta que esses mesmos entes são responsáveis por proteção e defesa da saúde e ainda proteção à infância e à juventude.

A Covid-19, o arroz e os absorventes higiênicos têm a ver com tudo isso, e o governo federal não faz nada mais que sua obrigação constitucional quando age em todas essas direções.

Desde 2014, a Organização das Nações Unidas considera o acesso à higiene menstrual um direito que precisa ser tratado como uma questão de saúde pública e de direitos humanos.

Uma entre cada quatro meninas brasileiras deixa de ir à escola durante o período menstrual por simples falta de acesso a um absorvente, constatou um levantamento da ONU sobre pobreza menstrual divulgado em maio deste ano. A média no Brasil é bem maior que a mundial, que é de uma em cada 10 segundo o relatório.

Por recorrerem a materiais inapropriados para conter o sangramento – como jornal, pão velho, folhas de árvores, pedaços de pano -, essas meninas e mulheres ficam sujeitas a alergias e irritações da pele e mucosas, infecções urogenitais como a cistite e a candidíase, e até uma condição conhecida como Síndrome do Choque Tóxico, que pode levar à morte.

Tudo isso somado ao dano emocional provocado pela pobreza menstrual.

No relatório divulgado em maio, a organização internacional alerta para o fato de que a pobreza menstrual “pode causar desconfortos, insegurança e estresse, contribuindo assim para aumentar a discriminação que meninas e mulheres sofrem. Põe em xeque o bem-estar, desenvolvimento e oportunidades para as meninas, já que elas temem vazamentos, dormem mal, perdem atividades de lazer, deixam de realizar atividades físicas; sofrem ainda com a diminuição da concentração e da produtividade”.

Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, do IBGE, a média de idade da primeira menstruação nas mulheres brasileiras é de 13 anos, sendo que quase 90% delas têm essa primeira experiência entre 11 e 15 anos de idade. Assim, a maioria absoluta das meninas passará boa parte de sua vida escolar menstruando.

Com isso, perdem, em média, até 45 dias de aula, por ano letivo, como revela o levantamento “Impacto da Pobreza Menstrual no Brasil”, encomendado por uma marca de absorvente e feito pela consultoria Toluna.

O ato biológico de menstruar acaba por virar mais um fator de desigualdade de oportunidades entre os gêneros, conforme enfatizou uma reportagem especial elaborada pela Agência Senado.

É uma questão de prioridades, e não de escolha

Boa parte dos eleitores brasileiro se deixa seduzir para depois arrotar o discurso fácil do “antes de investir em Cultura, tem que investir em Educação”, “pra quê gastar com camisinha, se tem que investir em Saúde?”.

E a turma do “sou contra a corrupção”? Ora, fale sério, quem é que é a favor da corrupção? Corrupção é crime. Ponto. Crime previsto em lei.

Governos não devem ter que escolher quais das suas obrigações constitucionais eles irão cumprir. São constitucionais, legais, TODAS têm que ser cumpridas.

O que a sociedade esquece – especialmente quando vai às urnas – é que política pública é uma questão de prioridade. Ela vai ter mais ou menos atenção de acordo com as prioridades de quem vai executá-las: os governantes que elegemos.

Assim, se um candidato recebe o suporte dos laboratórios farmacêuticos e dos grandes empresários do ramo da Saúde, não adianta depois você reclamar que falta verba para o SUS por causa da corrupção: é precisamente com o sucateamento da rede pública de saúde que os empresários da Medicina prosperam.

Quer alimentação orgânica, livre de veneno? Quer ambientes urbanos com menos criminalidade e mais emprego?

Então não vote em candidatos apoiados pelo agronegócio, pois a agricultura dos latifúndios precisa de agrotóxicos para ser lucrativa assim como de grandes terras com um único e milionário dono – o que empurra os lavradores sem-terra para as cidades, os faveliza e marginaliza.

Acredite se quiser, é a reforma agrária que possibilita uma agricultura orgânica praticada por muitos pequenos agricultores, que assim não precisarão fugir e superlotar as cidades em busca de sobrevivência, ao mesmo tempo em que produzirão comida suficiente para garantir a segurança alimentar da população a preços justos – então, se você enche o peito para dizer que é contra a distribuição de terras, não reclame do preço do arroz, do tomate ou da carne.            

Enfim, como diria Bela Gil, você pode substituir essa balela de “ou absorvente, ou combate a pandemia, ou arroz na cesta” por eleger governantes verdadeiramente comprometidos com o bem-estar dos brasileiros, por exemplo.

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Adilson Borges

Ou a gente tem governo sério, empático, preocupado com a vida e o bem estar das pessoas deste país ou continua com o governo Bolsonaro!

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