Dezembro Vermelho: Brasil fez História com leis sobre HIV/AIDS

Governo e legisladores enfrentaram potências internacionais e poder da indústria farmacêutica para proteger sociedade, combater epidemia e dar suporte aos portadores
Leis brasileiras garantem acesso gratuito à prevenção, tratamento e medicação contra o HIV/Aids, e também proteção previdenciária a quem é soropositivo (foto: Freepik)

Embora vermelho seja a cor mais associada à celebração natalina, o Dezembro Vermelho no Brasil é quando o país, há três décadas, pega carona no Dia Mundial de Luta Contra a Aids (estipulado internacionalmente em 1987 pela Assembleia Mundial de Saúde para 1º de dezembro) e coloca na rua o bloco da campanha de prevenção e conscientização sobre o HIV/Aids.

Os dados do Ministério da Saúde de dezembro de 2020 apontavam que cerca de 920 mil pessoas ainda vivem com HIV no Brasil, cerca de 642 mil pessoas estavam em tratamento antirretroviral e 94% das pessoas em tratamento não transmitem o HIV por via sexual por terem atingido carga viral indetectável.

Números à parte, e sem ignorar a importância absoluta da prevenção, a luta contra o HIV/Aids é uma daquelas de que o brasileiro deve se orgulhar: em 1997 desafiamos as potências internacionais, as poderosas empresas farmacêuticas do setor privado, os legisladores americanos socialmente conservadores, e de lá para cá – depois de vencermos em todas as frentes -, viramos modelo para o mundo.

O Brasil protegeu sua população ao promulgar uma legislação inovadora. Ela inclui uma lei de patentes que permite tanto a produção de medicamentos genéricos quanto sua distribuição gratuita universal com ou sem a permissão do detentor da patente. Esse direito, conhecido como licenciamento compulsório, é concedido às nações para responder às crises de saúde pública.

Em 2003 (seis anos após a promulgação da lei), o número de mortes relacionadas à AIDS havia caído em 50 por cento; as hospitalizações devido a complicações relacionadas à AIDS diminuíram em 80 por cento.

O governo consegue fornecer esses medicamentos de graça principalmente porque a produção nacional de ARVs (sigla em inglês para antirretrovirais) mantém os preços mais baixos do que os da variedade importada. Essa política desafia ativamente as empresas farmacêuticas internacionais, que cobram preços muito mais altos e estão sempre inclinadas a lucrar com as pandemias.

  1. Direito à prevenção

Além da quebra de patente para produção de medicamento antirretroviral e de acesso gratuito aos remédios via rede pública, o protagonismo brasileiro inclui uma série de leis que não só protegem o cidadão brasileiro contra a contaminação pelo vírus HIV quanto garantem suporte àqueles que são diagnosticados com o vírus – que suprime a imunidade do organismo humano.

 Entre as ações de prevenção está, por exemplo, o direito de acesso a preservativos gratuitos nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) de todo o país. O preservativo, ou camisinha, é o método mais conhecido, acessível e eficaz para se prevenir da infecção pelo HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST), como a sífilis, a gonorreia e alguns tipos de hepatites. Além disso, ele evita a gravidez não planejada.

Outra das estratégias de prevenção garantidas a todo/a brasileiro/a é a Profilaxia Pós-Exposição ao HIV (PEP), oferecida gratuitamente no SUS. A PEP é uma medida preventiva de urgência para ser utilizada em situação de risco à infecção pelo HIV.

Consiste no uso de medicamentos ou imunobiológicos para reduzir o risco de adquirir a infecção, e deve ser utilizada após qualquer situação em que exista risco de contágio, como violência sexual, relação sexual desprotegida (sem o uso de camisinha ou com seu rompimento) ou acidente ocupacional (com instrumentos perfurocortantes ou contato direto com material biológico).

Por ser uma urgência médica, deve ser iniciada o mais rápido possível, preferencialmente nas primeiras duas horas após a exposição de risco e no máximo em até 72 horas. A profilaxia deve ser realizada por 28 dias e a pessoa tem que ser acompanhada pela equipe de saúde, inclusive após esse período, realizando os exames necessários.

  • 2. Direito à medicação e tratamento gratuitos

A lei nº 9.313/96 dispõe sobre o direito a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do HIV e doentes de AIDS, e no seu artigo 1º determina que os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento.

A mesma lei, em seu artigo segundo, também determina o dever do Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, de padronizar os medicamentos a serem utilizados em cada estágio evolutivo da infecção e da doença, com vistas a orientar a aquisição dos mesmos pelos gestores do Sistema Único de Saúde, e que, a padronização de terapias deverá ser revista e republicada anualmente, ou sempre que se fizer necessário, para se adequar ao conhecimento científico atualizado e à disponibilidade de novos medicamentos no mercado.

Todas essas medidas, estipuladas como uma obrigação legal do Poder Estatal, têm o objetivo de garantir um tratamento adequado e eficiente durante os variados estágios da infecção viral.

As despesas decorrentes da implementação tanto dos medicamentos como da pesquisa científica voltadas a esse tema são financiadas com recursos do orçamento da Seguridade Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme regulamento – ou seja, conforme disposto em lei nacional, a prevenção, o diagnóstico e o tratamento do portador de HIV, além do financiamento das providências médicas e do avanço científico na pesquisa e aplicação prática, são deveres do governo federal. Assim, ninguém pode ter acesso vetado ao tratamento nem aos medicamentos que o compõe. Em caso de falta de acesso ao tratamento, não tenha dúvidas, procure os conselhos municipais de saúde ou apoio jurídico.

  • 3. Direitos do portador do HIV no trabalho

Pela Constituição brasileira, as pessoas vivendo com HIV, assim como todo e qualquer cidadão brasileiro, têm direitos e obrigações garantidas. Entre eles, à dignidade humana e ao acesso à saúde pública, e para isso estão amparados pela lei (arts. 5º e 6º da Constituição Federal de 1988).

No ambiente de trabalho, as pessoas vivendo com HIV têm direito de manter em sigilo a sua condição sorológica. Isso inclui testes de admissão, testes periódicos ou de demissão.

O médico tem por obrigação, nos exames legais (art. 168 da CLT), de somente averiguar a capacidade laborativa do trabalhador, sem referência a seu estudo sorológico. Em caso de violação ao seu direito ao sigilo sorológico, o trabalhador pode e deve registrar o ocorrido na Delegacia do Trabalho de sua região.

A testagem obrigatória é vedada por meio de dispositivos infraconstitucionais, trabalhistas, administrativos e éticos profissionais, além de instrumentos internacionais da Organização Mundial de Saúde e da Organização Internacional do Trabalho.

A portaria nº 1.246/2010 do então Ministério do Trabalho e Emprego (hoje Secretaria do Trabalho) em seu artigo segundo estabelece: “Não será permitida, de forma direta ou indireta, nos exames médicos por ocasião da admissão, mudança de função, avaliação periódica, retorno, demissão ou outros ligados à relação de emprego, a testagem do trabalhador quanto ao HIV.”

Do mesmo modo, todo portador do vírus da Aids tem direito à participação em todos os aspectos da vida social. Toda ação que visar a recusar aos soropositivos um emprego, um alojamento, qualquer tipo de assistência, ou que tenda a restringi-los à participação em atividades coletivas, escolares e militares, deve ser considerada discriminatória e ser punida por lei.

Em 2014 foi publicada a lei nº 12.984, que define o crime de discriminação aos portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e doentes de Aids, ato punível e passível de responsabilidade criminal pelo ofensor.

E se o fato ocorrer dentro do ambiente de trabalho, a pessoa ofendida poderá, por exemplo, pedir judicialmente a nulidade de demissão motivada pela conduta discriminatória, além de buscar indenização pelos danos e assédios morais sofridos tanto por ação de gestores como de colegas de trabalho.

  • 4. Direitos previdenciários do portador do HIV

A lei nº 7.670/1988, estende aos portadores da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/AIDS) diversos benefícios previdenciários, como por exemplo o auxílio-doença e a aposentadoria por invalidez, independente do período de carência.

O direito vale para todo segurado que, após filiação à Previdência Social, vier a manifestar a infecção por HIV. A lei inclui ainda o direito à pensão por morte aos seus dependentes e o levantamento dos valores correspondentes ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), independentemente de rescisão do contrato individual de trabalho ou de qualquer outro tipo de pecúlio a que o paciente tenha direito.

O direito ao auxílio doença e a aposentadoria por invalidez também estão previstos na Instrução Normativa INSS nº 117/2021, que estabelece rotinas para agilizar e uniformizar o reconhecimento de direitos dos segurados e beneficiários da Previdência Social, com observância dos princípios estabelecidos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988.

O benefício de auxílio doença será concedido a qualquer cidadão brasileiro que seja segurado (pague o seguro em dia) e que não possa trabalhar em razão de doença ou acidente por mais de 15 dias consecutivos.

A pessoa que vive com Aids ou com hepatopatia grave terá direito ao benefício sem a necessidade de cumprir o prazo mínimo de contribuição e desde que tenha qualidade de segurado, conforme o artigo 26, II, e artigo 151, ambos da lei 8.213/91 e da Instrução Normativa INSS nº 117/2021, que substituiu duas instruções anteriores similares.

As pessoas que vivem com HIV/Aids e que já estão aposentadas por invalidez são dispensadas de reavaliação pericial, um direito assegurado na lei nº 13.847 de 19 de junho de 2019.  

Já os portadores do vírus que nunca contribuíram para o INSS podem recorrer ao Benefício de Pestação Continuada, também conhecido como BPC/Loas. É a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa incapacitada para a vida independente e para o trabalho, bem como ao idoso com 65 anos ou mais que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção e nem tê-la provida por sua família.

Esse benefício independe de contribuições para a Previdência Social. Para recebê-lo, a pessoa deve dirigir-se ao posto do INSS mais próximo e comprovar sua situação. Essa comprovação pode ser feita com apresentação de Laudo de Avaliação (perícia médica do INSS ou equipe multiprofissional do Sistema Único de Saúde).

A renda familiar e o não-exercício de atividade remunerada deverão ser declarados pela pessoa que requer o benefício.

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