Intolerância religiosa: um tema bom para reflexão no Halloween

O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas documentou 22 mil vítimas acusadas de bruxaria nos últimos 10 anos, em 50 países. No Brasil, o STJ considera que "a liberdade religiosa deve ser reconhecida como um direito fundamental"
A Constituição instituiu como obrigação do Estado a proteção das manifestações culturais populares indígenas e afro- brasileiras e dos demais grupos participantes do processo civilizatório nacional, para “pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional” (foto: Unsplash)

Hallowen, palavra da língua inglesa, data popularmente conhecida no Brasil como Dia das Bruxas.

E já nas primeiras fotos publicadas nas redes sociais podemos ver que, apesar do tema de “histórias de terror”, o clima é bem animado e as pessoas se juntam para confraternizar trajando fantasias criativas, com brincadeiras copiadas do Hemisfério Norte (“doces ou travessuras?”).

Isso porque diferente daqui, onde o Dia de Finados é uma data Católica em que rezamos os mortos, lá a ideia é celebrar os que se foram.

Muitos esquecem de um assunto muito importante mas pouco comentado durante o festejo, que é a INTOLERÂNCIA RELIGIOSA.

E sendo o Halloween – o famoso dia da bruxas – uma “festa pagã”, onde há um estímulo aos participantes se vestirem de bruxas, mortos, feiticeiros, monstros e demônios, podemos aproveitar para questionar o porquê de, ainda hoje, pessoas serem mortas sob acusação de bruxaria.

O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas documentou 22 mil vítimas acusadas de bruxaria nos últimos 10 anos, em 50 países.

Seguimos na Idade das Trevas?

Para o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Humberto Martins, “no Brasil as múltiplas confissões religiosas que compõem o arcabouço do nosso tecido social devem ser vistas como um valoroso mosaico de nossa brasilidade. A liberdade religiosa deve ser reconhecida como um direito fundamental”.

De acordo com o presidente do STJ, cabe à magistratura zelar pela coesão da sociedade e, sobretudo, pela promoção da igualdade.

“Como vivemos em um país pacífico e plural, é missão imperiosa do Tribunal da Cidadania combater todas as formas de intolerância religiosa e racial. Devemos trabalhar incansavelmente para permitir que os nossos valores constituídos na letra da lei sejam o farol de uma sociedade moderna, harmônica e inclusiva”, declarou Martins.

Para defender a liberdade de religião de qualquer matriz temos, no Brasil, a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997, que considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões.

Um julgamento do RE nº 494.601/RS, que visava proibir a prática de sacrifício de animais em cultos religiosos chamou atenção pelos seus “argumentos”, e “preocupações” que seriam “mascaradas pela defesa do bem estar dos animais” de um lado mas de outro representavam ainda a intolerância religiosa institucionalizada no cerne da sociedade, principalmente no que se representa nas religiões de origem africana.

Mas sem se perder do tema, e ainda dentro do mesmo julgamento, pergunta-se: de que são feitos os sapatos do Estado Laico?

Para responder a essa questão, trazemos a fala do advogado Hédio Silva Jr, que realizou sustentação oral representando a União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil e o Conselho Estadual da Umbanda e dos Cultos Afro-Brasileiros do Rio Grande do Sul (CEUCAB/RS).

O advogado – única pessoa negra e a última a fazer sustentação oral – questionou o fato de que todos os que o precederam utilizavam sapatos de couro. Significa que não é o abate de animais que está em questão no Judiciário, mas o controle estatal das religiosidades de um grupo violentado desde o sequestro e escravidão. Dr. Hédio foi o primeiro a pronunciar: trata-se de uma manifestação do racismo religioso.

“Portanto é impressionante que haja estatísticas no Brasil que comprovam que jovens negros são chacinados como animais. Mas não há comoção na sociedade brasileira, não vejo instituições jurídicas ingressarem com medida judicial para evitar a chacina de jovens negros, mortos como cães na periferia. Mas a galinha da macumba, parece que a vida da galinha da macumba, vale mais do que a vida de milhares de jovens negros” (Hédio Silva Jr., em sustentação oral no julgamento do RE nº 494.601/RS).

Nas falas dos que se manifestaram contra, foram mobilizados argumentos discriminatórios há muito contestados por diferentes campos do conhecimento (antropologia e direito, por exemplo).

O representante do Ministério Público gaúcho utilizou o termo “seita” e chamou de “esquizofrenia legal” a lei que resguarda o sacrifício animal de religiões afro-brasileiras.

Na sustentação oral do advogado do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, o mesmo resgatou a terminologia “magia negra”, reivindicou a alegoria do gato preto nas sextas-feiras treze, e defendeu a inconstitucionalidade da lei mencionando práticas culturais violadoras de direitos humanos realizadas em outros países, como a mutilação genital feminina e o casamento infantil.

Argumentos ouvidos, porém rejeitados por humanidade do STF no julgamento do recurso extraordinário já que como defensor da constituição federal como um todo, deveu-se lembrar que a CF/88 em seu artigo 215, institui como obrigação do Estado a proteção das manifestações culturais populares indígenas e afro- brasileiras e dos demais grupos participantes do processo civilizatório nacional, para “pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”.

Em decorrência do dever protecionista estatal, o Brasil é signatário da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco (Decreto n. 5.753 de 12 de abril de 2006), a qual institui como patrimônio cultural imaterial uma série de “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas” que são transmitidas por gerações como forma de garantir o sentimento de pertencimento a uma determinada comunidade.

As práticas sociais, ritualísticas e de atos festivos, amparadas pelo artigo 2o, item 2, alínea “c”, abrangem os rituais de sacrifícios de animais realizados pelo Candomblé, como forma de preservação cultural religiosa.

O processo de sacralização animal trata-se, nitidamente, de manifestação cultural dos povos candomblecistas, tendo dupla finalidade, vez que além de servir como oferenda ao sagrado, alimenta a comunidade religiosa e visitantes.

Em que pese as ferozes críticas proferidas contra o julgado, o Ministro chamou a atenção para o fato de que, nos cultos de matriz africana, a proteção animal também deve estar em consonância com o estilo de vida carnívoro do homem.

Então não raro lembrar que enquanto comemoramos os dias das bruxas, vamos a churrascaria, ou consumimos bolsas sapatos, cintos e demais acessórios de couro, ou vestuários e domésticos que exploram os animais, as religiões de matrizes africanas ainda são atacadas pura e simplesmente por racismo e intolerância religiosa – e essa questão ainda tem que ser lembrada.

Dica

O julgamento da RE nº 494.601/RS, que visava proibir a prática de sacrifício de animais em cultos religiosos, está disponível no canal do Supremo na plataforma Youtube. Vale uma espiada.

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