Pets sofrem com hiatos de legislação e de políticas públicas

Ilha povoada de gatos abandonados no Rio de Janeiro revela a crueldade privada e a negligência pública para com os animais domésticos no Brasil
De acordo com a pesquisa Radar Pet 2021, realizada pela Comissão de Animais de Companhia, cerca de 10 milhões de pets foram abandonados por famílias brasileiras durante a pandemia. A principal justificativa seria a perda de poder aquisitivo (foto: Jari Hitonen/Unsplash)

Deu no The Washington Post: a Ilha Furtada, no litoral carioca, é o território de mais de 750 gatos.

Eles cresceram quase que à estatura de cães, são agressivos – e, enquanto se multiplicam durante a pandemia, começam a ameaçar o ecossistema local.

Ora, direis, gatos fazem travessias a nado?

Nada disso. Famílias que se mudavam da ilha começaram a deixar seus gatos domésticos para trás, explica a reportagem do periódico americano (acesse no link, com vídeos).

Enquanto esse pioneiros se reproduziam, a ilha – próxima a Angra dos Reis e Mangaratiba -, ganhou fama de Ilha dos Gatos, e pessoas decididas a se livrar de seus bichanos simplesmente começaram a levá-los para lá ou pagar barqueiros para fazerem o serviço de abandono.

O grande número de pessoas que resolveu se desfazer de seus peludos durante a pandemia de Covid-19 jogou por terra o trabalho da ONG Veterinários na Estrada, que, em uma luta árdua iniciada em 2012, havia conseguido castrar mais de 380 gatos do local.   

A história nada tem de engraçada: infelizmente, ela é mais um exemplo de maus-tratos a animais domésticos em nosso país, encorajados por um hiato legal que deixa uma brecha escancarada para a impunidade.

Na ilha, esses animaizinhos têm quase nenhum acesso a água limpa ou a comida apropriada, ao ponto de casos de canibalismo começarem a ser registrados.

Abandono explodiu com Covid-19

De acordo com a pesquisa Radar Pet 2021, realizada pela Comissão de Animais de Companhia (Comac), cerca de 10 milhões de pets foram abandonados por famílias brasileiras durante a pandemia. A principal justificativa seria a perda de poder aquisitivo, sugere a Comac.

Apesar de algumas decisões judiciais avançadas, a legislação brasileira no tópico do Direito Animal é bastante defasada, especialmente no que tange a animais domésticos ou de companhia.

A reboque desse hiato vem a ausência de políticas públicas, o desinteresse da população no quesito denúncia, e uma das consequências é o número absurdo de animais de rua – situação que, em si, já configura maus-tratos, para não falar do problema de saúde pública que impacta inclusive os seres humanos.

O Direito Animal não está estabelecido em um Código ou legislação específica.

Nossa Constituição Federal em seu artigo 225, parágrafo primeiro, inciso sete, diz que é obrigação do Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.

Só que o artigo 225 disciplina o direito de todo cidadão brasileiro a um meio ambiente ecologicamente equilibrado – o que acaba remetendo a uma interpretação voltada muito mais para a proteção dos animais silvestres e selvagens do que aos nossos amiguinhos domésticos.

No bojo da lei federal nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998 – que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente -, ficou estabelecida pena de detenção de três meses a um ano mais multa para quem praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.

No que se refere aos pets, esta lei acabou dando alguns passos adiante ao determinar que, quando se tratar de cão ou gato, a pena será de reclusão de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda – punição que pode ser aumentada de um sexto a um terço se ocorrer morte do animalzinho. O endurecimento da pena foi introduzido em 2020 pela lei nº 14.064.

Um dos atrasos do Brasil em relação a outros países é, por exemplo, o fato de nosso ordenamento legal não trazer uma definição legal de animal de companhia ou de estimação.

O artigo 1º da Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia, por exemplo, define animal de companhia como qualquer animal mantido por humanos, principalmente em suas casas, por prazer e como companheiro.

Já o artigo terceiro determina que ninguém deve inutilmente causar dor, sofrimento ou angústia a um animal de companhia, e ainda que ninguém deve abandonar um animal de companhia.

O Reino Unido está um passo a frente do conjunto europeu, reconhece a World Animal Protection, organização internacional que criou um índice para classificar 50 países em todo o mundo de acordo com sua legislação e políticas públicas adotadas para a proteção dos animais.

O país, por exemplo, proibiu integralmente a venda de cachorros e gatinhos com menos de oito semanas de idade e assumiu o compromisso de erradicar o comércio ilegítimo de cães e gatos criados em condições precárias de bem-estar (as chamadas fábricas de filhotes ou fazendas de filhotes).

No Brasil, essas fábricas cruéis de mercantilização de pets, que penalizam especialmente as fêmeas, acabaram ficando mais expostas graças ao ativismo da paulista Luísa Mell e suas habilidades de comunicadora.

Recentemente, em uma atualização de sua política para ofertas comerciais, o Facebook proibiu a venda de qualquer tipo de animal vivo pelas redes sociais, sejam eles de estimação ou voltados para pecuária. A proibição também vale para o Instagram.

Em setembro de 2021, em decisão inédita, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ/PR) reconheceu o direito de animais domésticos serem autores de ações judiciais – o que beneficiou os cãezinhos Rambo e Spike, vítimas de maus-tratos e representados em juízo pela advogada da ONG Sou Amigo, da cidade de Cascavel, contra seus ex-tutores.

Em setembro de 2019 o município de Santos (SP) fez História ao proibir a concessão e renovação de alvará de licença, localização e funcionamento aos canis, gatis e estabelecimentos comerciais que pratiquem a comercialização de animais domésticos.

De lambuja, a lei municipal ainda definiu os animais domésticos como “cães, gatos, coelho, roedores, pássaros e demais animais que através de processos tradicionais e sistematizados de manejo e/ou melhoramento zootécnico tornaram-se domésticos, conforme definições estabelecidas pelo instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA)”.

Dicas:

A Revista Brasileira de Direito Animal é a primeira revista relacionada com o atual debate sobre o Direito Animal na América Latina, coordenada pelos Promotores de Justiça de meio ambiente do Ministério Público do Estado da Bahia, Heron Gordilho, Luciano Rocha Santana e pelo professor Tagore Trajano. É publicada pelo Instituto Abolicionista Animal em parceria com o Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direito Ambiental e Direito Animal do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

Na obra Sutta Nipata, Gautama Buddha, líder espiritual indiano fundador do budismo, afirma que os seres humanos têm responsabilidades sobre os animais pela simples razão da assimetria de poder: por serem muito mais poderosos que qualquer outra espécie animal, os homens têm o dever moral de proteger as demais espécies.   

Quer ajudar peludinhos vítimas de abandono e maus tratos? Em Salvador, o projeto Ronron, o Abrigo Mais Aumigos e a ONG Gatinhos SOS fazem trabalho incansável e sério de resgate, tratamento, abrigo e intermediação da adoção de pets.

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@projetoronrom3

Olá parabéns pela matéria, nossa luta é árdua mais vale a pena, nossas leis ainda precisam ser bem aplicadas e atualizadas, essa luta é de todos, juntos podemos fazer muito pelos animais em situação de vulnerabilidade, obrigado por apoiar a causa animal e divulgar nosso pequeno mais muito importante trabalho, ???? Aqui no @projetoronrom3 lutamos pela vida, todas as vidas independente da espécie ???????????

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