As atuais leis brasileiras sobre autismo são, sem dúvida, um avanço recente na história do direito. No entanto, a aplicação delas na prática gera ainda muitas dúvidas nos pais, na escola, entre os terapeutas e na sociedade. E por causa disso famílias pelo país inteiro vivem um dia a dia difícil em que, quase sempre, o mais prejudicado é o autista.
Assim, para entender quais são e para onde vão os atuais direitos das pessoas que estão no espectro do autismo, fomos conversar com uma advogada. A dra. Luma Dórea, da Bahia, é especialista em direito público e doutoranda em direito ambiental. Com uma atuação bastante engajada na garantia dos direitos das minorias – incluindo pessoas com deficiência -, Luma falou sobre vários aspectos das leis – da concepção à realidade.
- Quais são as leis brasileiras sobre autismo e por que elas nem sempre funcionam?
Atualmente, em 2022, algumas políticas válidas em todo o Brasil falam direta ou indiretamente de casos de autismo. Luma cita, como destaque, a lei específica dos direitos das pessoas autistas e a Lei Orgânica de Assistência Social, conhecida como LOAS.
Hoje, nós temos políticas nacionais que têm que ser aplicadas. Nós temos, também, as jurisprudências que são decisões judiciais que foram consolidadas pelo STJ. E, ainda, temos a lei brasileira de 2012, que é a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei 12.764/2012).
Quando a gente tem uma Lei, essa Lei é uma regra, não tem o campo do livre conhecimento do Juiz. Não é opcional, a Lei tem que ser aplicada. Mas, infelizmente, não é sempre assim. As pessoas entram com o pedido e, muitas vezes, elas têm o direito negado“, explica Luma. “O que as pessoas e instituições utilizam para negar vai depender do artigo a que a pessoa faz referência.
Na questão do direito ao trabalho, por exemplo, elas vão questionar a reserva de vagas, alegando que já preencheram cotas pela lei geral da pessoa com deficiência. Outras, porém, alegam que não tiveram candidatos aptos ao cargo. Mas, principalmente, a maioria também se vale da falta de fiscalização do Ministério do Trabalho, que não está regulando as empresas que são aplicadas à obrigatoriedade de cotas.
Por isso, é tão difícil fazer as leis brasileiras sobre autismo serem cumpridas. Afinal, em geral, quando o Ministério Público vai interferir, é porque o problema partiu de uma denúncia. É muito difícil que essa iniciativa não parta primeiro de uma vontade particular”, conclui.
- Sobre o LOAS e as fragilidades do sistema
Como citamos anteriormente, o LOAS é outro direito bem conhecido mas que, tantas vezes, leva as famílias a terem que brigar judicialmente.
Para conseguir o LOAS, qualquer pessoa precisa preencher dois requisitos: ter uma doença incapacitante e não ter, definitivamente, condições para trabalhar; ou ter uma renda que a coloque em situação de miséria.
“Vamos imaginar que um indivíduo preencha esses dois requisitos. Nesse caso, a pessoa vai até o INSS, faz uma perícia e, então, recebe um laudo. Em seguida, faz outra perícia com um assistente social que vai até a residência e que vai verificar o histórico econômico e financeiro tanto da pessoa como da família. E depois disso, o benefício é negado ou aprovado.
Em relação às pessoas com deficiências cognitivas, como é o caso dos autistas, a gente tem dois problemas que podem acontecer. Antes de tudo, uma perícia médica superficial. Existem muitos peritos que não são das especialidades neurológicas, então eles acabam dando um lado, de fato, raso.
Depois, temos o segundo problema, que é a situação econômica dessa pessoa que, às vezes, é muito frágil. E a análise nem sempre leva em consideração a renda da pessoa em comparação com o tratamento que ela precisa fazer. Nem mesmo o que ela tem gastado para ter uma sobrevivência digna.
E é por isso então, que na falta de um resultado adequado pelas vias administrativas, muitas vezes recorremos aos meios judiciais“, conclui Luma.
- Os problemas com as leis brasileiras sobre autismo podem ser ainda mais profundo
A dra. Luma, que há algum tempo comanda um blog em que ela explica questões jurídicas em linguagem acessível, sabe bem que, no que diz respeito ao funcionamento das leis, podemos usar o termo de que o buraco é mais em baixo. Reduzir a crítica somente às pessoas que estão na ponta desse sistema é ignorar a estrutura de como as coisas, de fato, funcionam.
“Além da falta de conhecimento sobre o que já está constituído, a gente tem outro problema que precisa ser revisto. Não adianta a gente ter uma política de nível nacional, como a Lei 12.764/2012, e não ter a capacidade de financiamento público para a eficácia do que está na lei.
A lei é muito bonita na teoria, mas na prática ela não é aplicada, muitas vezes, pela falta de recursos do órgão público. Nesse caso, estamos falando do Sistema Único de Saúde, o SUS. O SUS tem que ter, em todos os lugares, os médicos especialistas e alguns tipos de terapia aplicadas a pessoas com determinadas condições.
Quando um artigo diz sobre o direito à saúde, é um direito pleno, que engloba todos os especialistas e tratamentos e condições que a pessoa tem que ter. E quando fala de direito à educação, é uma educação especial. E a gente não tem profissionais, nem recursos e nem a reserva de vagas para atender essas pessoas.
Mesmo saindo da esfera pública, até mesmo alguns planos de saúde se valem de previsões contratuais que são rasas e nada específicas. Isso acontece para não dar a elas as ferramentas para o desenvolvimento e, novamente os pais precisam ir até a Justiça para que essa esfera determine o que é essencial, de fato”, explica
- O conflito das famílias contra as instituições
Luma explica ainda que, atualmente, a maior parte do conflito pelos quais os pais dos autistas passam é sem dúvida, contra empresas de saúde e escolas.
“Como operadora do direito, eu entendo que é impossível fazer um contrato que inclua todas as especificidades de tratamentos e terapias. Isto porque cada caso é um caso e os direcionamentos serão diferentes. Mas se a a gente conseguir ter um laudo que explique em detalhes o que é essencial, tanto o sistema público quanto o particular está obrigado a prover.
A gente tem visto os órgãos colocarem condições que não existem e dizerem que certos pontos são relativos. Não, não é relativo. O que é essencial à inclusão da pessoa não é relativo. Então, a gente tem que buscar os instrumentos para garantir a lei.
Mas, pelo menos no setor privado, os recursos existem. Lá, é mais fácil de a gente conseguir direcionar a demanda para um profissional que atenda particular. E depois o plano vai reembolsar. O problema maior é, sem dúvida, no setor público, porque dependemos de uma gestão orçamentária e eficiente. A gente depende que toda a equipe médica e escolar esteja contratada e que elas saibam lidar com esse tipo de problema. Na esfera pública é tudo mais burocrático e mais difícil”.
- O autismo no Censo pode mudar as leis brasileiras sobre autismo?
O que Luma explica acima, sobre as travas do poder público, tem agora um exemplo claro de como isso atrasa as coisas. Até 2019, o Censo, principal instrumento de informações sociais amplas no Brasil, não incluía perguntas sobre o autismo. Logo, os órgãos públicos careciam de informações oficiais de como é a realidade e a presença do TEA por regiões.
A pesquisa, que é feita pelo IBGE, seria feita em 2020, mas foi adiada devido a pandemia. No ano seguinte, 2021, o argumento do Governo Federal foi de que a pesquisa não foi feita por falta de recursos. Ao que tudo indica, ela está sendo feita em 2022, já com os tópicos do TEA. A medida foi sancionada pela Lei 13.861. ¹
“As novas informações podem mudar as relações sociais em torno do TEA”
Para Luma, essa é uma medida que, sem dúvida, tem o poder de mudar a forma como as leis brasileiras sobre autismo são feitas, refeitas e, por fim, aplicadas.
“Eu vejo a inserção do autismo no Censo como um avanço muito positivo. É normal que as pessoas criem leis através do achismo, afinal, uma lei é um instrumento social feito a partir das relações humanas. E a lei é mutável, ela evolui, assim como nós enquanto sociedade. E quando fazemos uma lei, não sabemos como ela vai acontecer na prática.
A existência da Lei do Autismo já foi, de fato, um avanço. Mas com a adição de informações mais precisas e específicas a gente tende a melhorar. Quando as pessoas vão ler a lei, elas percebem que o texto está ganhando novas resoluções o tempo todo. O Censo vai ajudar a aparar as arestas e ver o que está sendo efetivo e o que não.
Atualmente, temos uma visão rasa e abstrata do assunto. Tanto por falta de informações como por falta de interesse. Somos, tantas vezes, taxativos em definir os autistas pela condição. Elas terão, sim, direcionamentos por conta do transtorno, mas elas não são o transtorno. As novas informações levantadas podem mudar as relações sociais em torno do TEA”, finaliza.
*Todos os créditos da matéria são do site Autismo em Dia, a matéria na original pode ser visualizada através deste link
No Autismo em Dia, se trabalha para fazer com que a sociedade tenha mais conhecimento sobre o TEA, como defendi na entrevista. Por isso, te convidamos a visitar também o blog do Autismo em Dia e segui-los nas redes sociais: Instagram, no Facebook e no YouTube.