Tripla crise planetária: melhor chamar as mulheres

O Hemisfério Norte enfrentou em 2023 um verão com as temperaturas oceânicas mais altas já registradas; o Chifre da África amarga seca prolongada; o Havaí atravessa incêndios letais; o Canadá vive uma das temporadas de furacões e ciclones mais ativas de sua História; inundações catastróficas ocorreram em 10 países e territórios em apenas 12 dias.

Enquanto o planeta assiste, atordoado, aos impactos do aquecimento global e decide (tardiamente) assinar a sentença de morte dos combustíveis fósseis (que foi o resultado bombástico da COP28 em Dubai), por outro lado esnoba o conhecimento ancestral que pode ter o condão de mitigar os cataclismas e acelerar a adaptação às mudanças climáticas. 

Realizada em Dubai como evento prévio à COP28, a Conferência Global sobre Gênero e Meio Ambiente terminou com um apelo aos líderes mundiais para que turbinem a coleta científico-estatística de dados sobre a interseção entre mudança climática e população feminina. E a razão é tão humanitária quanto pragmática: se empiricamente já se sabe que as mulheres são mais negativamente impactadas pelos efeitos do aquecimento global que os homens, por outro também já vem sendo amplamente constatado que elas guardam a chave das soluções de mitigação, resiliência e adaptação.

   O documento final da conferência, Contando com um Futuro Sustentável para Todos (por meio de dados sobre gênero e meio ambiente), afirma que “a contínua falta de estatísticas de gênero sobre a tripla crise planetária (alterações climáticas, poluição e perda de biodiversidade) desafia a capacidade dos decisores políticos de implementar medidas eficazes, políticas e programas sensíveis ao gênero e baseadas em evidências.”

O chamamento global dá seguimento a um documento de 2022 resultante da Conferência de Bonn sobre Mudanças Climáticas. A partir dos relatórios apresentados por 11 integrantes da ONU (União Europeia e mais 10 países de todos os continentes – o Brasil não contribuiu) e oito organizações internacionais, o documento registra exemplos concretos dessa interseção.

O impacto desigual é um achado unânime

            Todos os 19 países e organizações que colaboraram com dados e informações para o relatório Dimensões e exemplos dos impactos das alterações climáticas com diferenciação de género, o papel das mulheres como agentes de mudança e oportunidades para as mulheres reconheceram que há, sim, impacto diferenciado sobre mulheres e meninas dos cataclismas e desastres extremos conectados com as mudanças climáticas.

            A Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma das colaboradoras do relatório, registrou por exemplo que mulheres e crianças representam 80% da população deslocada devido às mudanças climáticas.

            Já o aumento da violência contra elas após desastres induzidos pelo clima foi mencionado em todos os documentos – especialmente à luz da pandemia de Covid-19 e dos fenômenos climáticos extremos que atingiram o Sul Global nos últimos três anos.

O Centro de Genebra para a Governança do Setor de Segurança, outra das entidades que contribuiu para o relatório, registrou os exemplos da Colômbia, Mali e Iêmen, onde mulheres e meninas estão particularmente em risco de sofrer violência devido à combinação de impactos adversos das alterações climáticas, degradação ambiental e conflitos internos. A análise revelou que o crescimento dessa violência reduz a capacidade de adaptação e de resiliência delas, enfraquecendo consequentemente a resiliência futura das comunidades aos impactos das alterações climáticas.

            Segundo o relatório, o casamento infantil, uma forma de violência contra meninas, tem sido observado em várias comunidades em diferentes países e regiões como forma de lidar com o empobrecimento das famílias acentuado pelo aquecimento global – como foi constatado em Bangladesh, Etiópia e Quênia, onde meninas dadas em casamento garantem algum retorno em recurso para suas famílias.

Outro mecanismo de sobrevivência comumente adotado nessas comunidades, afirma o relatório, é tirar as meninas da escola para que elas ajudem nas tarefas domésticas. Isso porque as tarefas de coleta de lenha e busca de água tradicionalmente cabem às mulheres e às meninas segundo as normas societárias de vários países.

Quando localidades são fortemente afetadas pelos impactos adversos das alterações climáticas e esses recursos escasseiam, elas são forçadas a viajar para mais longe de suas casas para encontrá-los. Por sua vez, as jornadas mais longas aumentam a exposição à violência, inclusive ao risco de estupros.

Em seu Documento Temático sobre Trabalho Infantil e mudanças Climáticas de dezembro de 2023, a OIT chama atenção para um estudo sobre o efeito, nas zonas rurais do Haiti, do furacão Matthew: 46% das crianças matriculadas deixaram de frequentar a escola porque seus pais identificaram a necessidade do trabalho infantil na agricultura familiar – dada a perda de rendimento devido aos danos à colheita e às mortes de gado. Em Madagáscar, sudeste da África, a escassez de chuvas e os ciclones aumentaram a probabilidade de adolescentes entre 14 e 16 anos entrarem no mercado de trabalho, especialmente as meninas.

A evasão escolar forçada mais o casamento infantil são exemplos de práticas violentas que aumentaram na esteira do aquecimento global e que fazem a igualdade de gênero retroceder algumas décadas, ficando as sociedades mais longe de alcançar o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5 (Igualdade de Gênero). Sem educação formal, as mulheres vão ficando mais afastadas dos espaços de tomada de decisão, da vida pública, do trabalho decente, do conhecimento tecnológico, do acesso a financiamentos, perpetuando o ciclo de pobreza ou a dependência econômica (que é um fator de risco para a violência baseada em gênero).

Alijadas da titularidade da terra

A desigualdade de gênero na propriedade formal da terra agrava as dificuldades enfrentadas pelas mulheres em tempos de aquecimento global. O relatório da Conferência de Bonn cita um estudo de 2022 da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação sobre os impactos diferenciados da desertificação, da degradação dos solos e da seca sobre homens e mulheres.

O estudo demonstrou como as mulheres, em uma escala mundial, têm acesso desigual à propriedade da terra em comparação com os homens: mesmo em regiões como Ásia Central e Cáucaso, onde a igualdade de gênero é promulgada por lei, as mulheres representam apenas 23% dos proprietários de terras. O estudo também destacou que 102 países ainda negam direitos à terra às mulheres ao abrigo de práticas e leis consuetudinárias, tradicionais ou religiosas.

Outra colaboradora do relatório, a organização WECF (Mulheres Engajam-se para um Futuro Comum, na tradução da sigla para o Português) destacou que o direito limitado das mulheres de Camarões à propriedade da terra afeta negativamente a gestão florestal sustentável e as oportunidades de geração de rendimento. Já o Centro de Genebra para a Governança do Setor de Segurança reconheceu um fenômeno semelhante na Colômbia, no Mali e no Iêmen.

Em suas observações incluídas no documento, a OIT e a WECF enfatizaram a importância da propriedade feminina da terra em relação tanto à identificação dos beneficiários como à concessão de fundos de financiamento climático: como muitas vezes as mulheres não têm direito à titularidade da terra devido a normas patriarcais de gênero, elas acabam ficando à margem de iniciativas que de outra forma estariam disponíveis para elas.

Mulheres tomam decisões mais sustentáveis

O outro lado da moeda é o reconhecimento consensual sobre o papel das mulheres como agentes de mudança e a necessidade de uma governança ambiental que as inclua – o que foi destacado entre todos os colaboradores do relatório resultante da Conferência de Bonn. Todos salientaram que uma melhor integração das mulheres e dos grupos marginalizados à tomada de decisões, em todos os níveis, ajudaria a melhorar as políticas de mitigação e adaptação.

“As mulheres, enquanto grupo, são excluídas ou afastadas da tomada de decisões em muitos contextos em todo o mundo. Isto apesar das evidências de que as mulheres, como indivíduos, tomarão muitas vezes decisões mais sustentáveis do que os homens nas mesmas circunstâncias, seja em relação aos seus hábitos alimentares, de transporte, ou no planejamento de investimento e orçamento, tanto dentro como fora de casa.”, frisou o documento.

Além disso, cita o relatório, um estudo de 2019 demonstrou que a representação feminina no parlamento leva os países a adotar políticas mais rigorosas em matéria de mudanças climáticas, que por sua vez resultam em emissões mais baixas de dióxido de carbono.

            Em particular, as contribuições mencionaram as mulheres indígenas, que frequentemente são guardiães do conhecimento tradicional – o que o AR6 (o sexto relatório de avaliação do IPCC) considera fundamental para a concepção de políticas climáticas de resiliência. A fim de preservar e aplicar o conhecimento tradicional e indígena, afirma o documento, esses grupos devem ser capacitados para partilhar o seu conhecimento através de abordagens culturalmente respeitosas e inclusivas.

            A organização Landesa (Landesa Rural Development Initiative and Practical Action) relatou que as mulheres envolvidas em atividades agrícolas (culturas comerciais e agricultura de subsistência) tendem a fazer escolhas resilientes ao clima para alcançar a segurança alimentar dos seus agregados familiares. Além disso, elas agem com base em informações de alerta precoce mais rapidamente do que os homens.

As contribuições da República Centro-Africana, do Quênia e do Panamá informaram que, nos agregados familiares chefiados por mulheres, a educação das crianças continua a ser uma prioridade mesmo após uma catástrofe – e, portanto, as taxas de abandono escolar das meninas são mais baixas do que nas famílias chefiadas por homens. Isso porque as mulheres tendem a ter as gerações futuras em conta nas suas decisões – e, portanto, fazem escolhas que podem ajudar a aumentar a resiliência no futuro.

Os estudos sobre padrões de mobilidade tanto no Norte Global como no Sul Global mostraram que as mulheres tendem a ter hábitos de transporte mais sustentáveis do que os homens. Elas tendem a fazer viagens mais curtas, utilizar vários meios de transporte e escolher locomoção que produz menos poluição.

Tornar os modos de transporte mais seguros para as mulheres através de um planejamento urbano inteligente traz benefícios conjuntos para a sociedade como um todo, afirma o relatório. A Finlândia, por exemplo, aumentou a segurança das suas ciclovias e tomou medidas para aumentar a frequência dos transportes públicos. Como resultado, o número de usuários do sistema público aumentou, reduzindo assim o número de carros nas cidades e consequentemente as emissões de gases com efeito de estufa.

Muitas contribuições indicaram que as mulheres tendem a ter hábitos alimentares mais sustentáveis do que os homens e planejam de forma mais sustentável para garantir a segurança alimentar no seu agregado familiar.

Um estudo alemão descobriu, por exemplo, que as dietas das mulheres nos países desenvolvidos tendem a incluir mais alimentos cuja produção exige menos recursos e menos carne em comparação com as dietas dos homens. Quanto aos países em desenvolvimento, o Landesa observou que as mulheres são protagonistas de muitas inovações na agricultura de subsistência, criando ciclos virtuosos do campo à mesa.

Na República Centro-Africana, as mulheres adaptaram os seus hábitos culinários no sentido de consumirem menos lenha; na Indonésia, mulheres receberam uma plataforma para compartilharem seu conhecimento tradicional sobre práticas de gestão da água, incluindo a preservação e replantação de árvores em torno das fontes de água para aumentar a segurança hídrica.

Um planeta que enfrenta os efeitos adversos de secas, inundações, furacões, chuvas extremas e da subida do nível do mar não pode seguir se dando ao luxo de desperdiçar a sabedoria feminina ambiental atávica.

Este artigo teve sua versão reduzida publicada no Jornal A Tarde em 25 de dezembro de 2023.

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