Os números não mentem nem manipulam a verdade: a violência doméstica contra a mulher ainda é situação alarmante na população brasileira.
Entre 2020 e 2021, números do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), tabulados pelo Instituto Santos Dumont (ISD), mostram que no Brasil o volume de delitos contra as mulheres triplicou. Passou de 271.392 registros para 823.127.
Entre essas violações, está a forma mais extrema de violência: o feminicídio. Em uma comparação com 83 países, o Brasil possui taxa média de 4,8 assassinatos a cada 100 mil mulheres, ocupando assim o 5º lugar no ranking mundial de feminicídios.
É inegável que a primeira medida de enfrentamento a violência doméstica se faz através da denúncia às autoridades policiais e judiciárias e através da obtenção das medidas protetivas em favor das vítimas.
Contudo, muitas mulheres ainda enfrentam consequências negativas após denunciarem seus agressores, o que é também um tipo de violência e se chama assédio judicial. Para evitar esse tipo de retaliação e forma de opressão em relação às vítimas de violência doméstica, nós defensores das assistidas, devemos refletir: após a realização da denúncia, o que deve ser feito?
Muitas mulheres contam que desistem de seguir em frente com os registros de ocorrência por medo de “não dar em nada”, e apenas “aumentar a violência em casa”. A falta de informações sobre como acompanhar o andamento da denúncia, onde encontrar centros de acolhimento e como cobrar que as medidas protetivas efetivamente cumpridas, desmotiva-as a buscar por ajuda.
Ademais, não raro observamos – em processos de família que envolvem violência doméstica com medida protetiva em curso -, o pedido de realização de “audiência conciliatória” pelo ofensor. Isso porque, em razão de ter sido afastado pela Medida Protetiva de Urgência e não possuir mais contato com a vítima, ele utiliza desse artifício processual para estar “cara a cara” com a vítima diante da justiça e exibir o poder que acredita ter.
Para esse tipo de artimanha já existe o Enunciado 639 do Fórum Permanente dos Processualistas Civis, que dispôs que “o juiz poderá, excepcionalmente, dispensar a audiência de mediação ou conciliação nas ações de família quando uma das partes estiver amparada por medida protetiva.”
Em caso recente, no meio do processo o Juízo de Família determinou que a vítima de violência doméstica familiar comparecesse a uma audiência de conciliação virtual com o ex-marido.
De maneira diligente, o Defensor público Bruno Malta Borges, titular da 5ª Defensoria Pública de Família e Sucessões de Goiânia, interpôs então um recurso de agravo de instrumento contra a decisão, argumentando que a assistida era vítima de violência doméstica e já havia deixado claro que não tinha interesse na realização da audiência.
O pedido foi rapidamente acatado pelo Tribunal de Justiça de Goiás. “Eu não queria ter contato nenhum com meu ex-marido. Graças a Deus deu tudo certo e eu estou muito feliz que tudo correu rapidamente”, comemorou a vítima, cuja identidade foi protegida.
No requerimento, o defensor ressaltou que o casal não tem bens nem dívidas contraídas durante o casamento, e possui apenas um filho já maior de idade.
“Sabe-se que a lei processual civil, sobretudo nas ações de Família, estimula a busca pela solução consensual dos conflitos. Entretanto, não se pode obrigar uma mulher vítima de violência doméstica a participar de uma audiência de conciliação ou de mediação contra a sua vontade, obrigando-a a reviver a experiência traumática da violência sofrida. É importante lembrar, ainda, que a mediação pressupõe a isonomia entre as partes, não havendo isonomia entre a vítima de violência doméstica e o seu agressor, já que a violência subverte essa igualdade, substituindo-a pelo temor, pelo medo, pela revitimização”, ressaltou Bruno Malta, a matéria na integra sobre este caso foi publicada pela ANADEP (Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos), em dezembro de 2021.
Conforme disposição expressa no artigo 2º da Lei n. 13.130/2015, ninguém deve ser obrigado a permanecer em procedimento de mediação. Portanto, a realização ou não de audiência de conciliação ou de mediação, pelo Código de Processo Civil, corresponde a uma faculdade das partes envolvidas, e não a uma obrigação.
Além do não cumprimento efetivo das medidas protetivas de urgência e de afastamento dos ofensores de suas vítimas, dentre outras ocorrências no enfrentamento da violência doméstica e familiar, ainda nos deparamos com o assédio judicial.
Assédio judicial é a utilização do Poder Judiciário como forma de perseguição e intimidação, especialmente contra defensores de direitos humanos de das minorias.
Em função do assédio judicial, o ofensor, que frequentemente é dotado de maior poder econômico que as vítimas, tenta processá-las e persegui-las através de reclamações, processos e denúncias, em que se invertem as partes no processo judicial: a vítima é colocada como ré, e o agressor se coloca como autor.
A Justiça brasileira tem definido o assédio processual como um abuso do acesso à Justiça, pelo ajuizamento de diversas ações sobre um mesmo fato ou contra uma mesma pessoa, com o intuito de prejudicá-la e, nesse caso, caberia a condenação por litigância de má-fé.
Em processos distintos em Alagoas, dois irmãos foram condenados por litigância de má-fé ao praticarem assédio jurídico contra uma vítima de violência doméstica. Para o juiz responsável pelo caso, os irmãos pretendiam constranger a vítima e inverter a culpa.
Para o juiz José Eduardo Nobre Carlos, do Juizado Especial de Penedo, é descabida a pretensão de que o autor de violência doméstica obtenha indenização por fato que ele provocou, sob pena de se prolongar a agressão contra a vítima e de perpetuar a violência contra a mulher.
O magistrado afirmou que a condenação por litigância de má-fé resta clara e necessária, pois o autor propôs a ação de reparação de danos para inverter a culpa à qual somente ele deu causa. Destacou, ainda, que o assédio jurídico configura violência psicológica prevista na Lei Maria da Penha (11.340/2006).
“A hipótese dos autos é de um claro assédio jurídico, no intuito de retaliação contra a ré.
Nesse sentido, o irmão do autor, com os mesmos patronos do autor, propôs semelhante e descabida demanda indenizatória contra ela,” anotou o juiz.
O ex-companheiro foi condenado em 10% sobre o valor atualizado da causa. Ambos os irmãos deverão pagar ainda as custas processuais e os honorários advocatícios, no patamar de 20% do valor atualizado da causa.
Para a advogada Anne Caroline Fidelis, presidente da Comissão de Violência de Gênero da seção Alagoas do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM-AL, a decisão representa um marco para o Direito das Mulheres. “Esse tipo de assédio jurídico ocorre com muita frequência e vem-se perpetuando ao longo da história, pois a tentativa de inversão da ‘culpa’ é um subterfúgio que os agressores comumente tentam utilizar.”
Segundo a especialista, a inversão da culpa banaliza a violência contra a mulher ao promover a sensação de que está tudo bem culpá-la pela agressão sofrida. “Acredito que essa decisão abre precedentes para reforçar os direitos humanos das mulheres”, afirma Anne.
Anne explica que o assédio jurídico pode ser considerado violência psicológica. Ela cita o artigo 147-B da Lei 14.188/2021, que tipifica esse tipo de violência como o ato de “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação.”
“É considerado violência psicológica contra a mulher todo e qualquer ato que vise, de forma direta e/ou indireta, causar danos emocionais, interferindo, assim, em seu desenvolvimento mental, emocional, em suas ações, decisões e sua liberdade.”
Desse modo, compreendo que o assédio jurídico no referido caso pode ser considerado, sim, como violência psicológica, uma vez que o ajuizamento de ação de indenização dos dois irmãos tinha como principal finalidade perpetuar a violência deferida contra a ex-mulher, causando imensos danos emocionais, seja prejudicando, seja perturbando a vida dela.
Caracteriza, ainda, o uso da litigância de má-fé por ambos, uma vez que utilizaram determinada situação para tentar inverter a culpa no referido processo”, detalha a advogada.
Anne conclui que o ajuizamento das duas ações ocasiona “a tentativa de perpetuação da violência a qual a mulher era submetida”. A matéria na integra sobre essa condenação de litigância de má-fé foi publicada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, em março de 2022.
Processos 0700985-12.2021.8.02.0049 e 0700381-24.2021.8.02.0349