Com o intuito de eliminar ou proibir as discriminações baseadas em gênero e raça, o Brasil assinou e ratificou vários compromissos internacionais.
Um deles é a CEDAW – Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher -, o Protocolo Facultativo da CEDAW, além de quase todas as convenções da OIT e da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (a CERD), um dos mais antigos compromissos internacionais visando à eliminação do tratamento racial desigual dentro das sociedades.
A Constituição Federal do Brasil de 1988 traz em seu corpo uma série de preceitos que buscam garantir a igualdade entre todos e a não-discriminação por qualquer motivo.
São exemplos o estabelecido no artigo 5º, que diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade….” (art. 5º, caput).
Nossa Constituição deixa claro, também, que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações…” (art. 5º, I). No art. 7º, inciso XXX, encontramos ainda: “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.
Assim, a presença de preconceitos e discriminações não é aceita no corpo jurídico do país.
Entretanto, e infelizmente, os dados estatísticos cientificamente aferidos pelos órgãos oficiais do país revelam as profundas desigualdades da nossa vida real – e mostram que a combinação das desigualdades racial e de gênero coloca no topo da pirâmide da injustiça a mulher negra brasileira.
Essa desigualdade transversal que soma gênero e raça se acirrou com a pandemia de Covid-19.
Enquanto o IBGE constatou que o desemprego, por exemplo, atingiu 33,2% entre a população preta e parda contra 10,4% da população branca, um estudo paralelo do data_labe, laboratório de dados localizado na Favela da Maré (RJ), usando os números do próprio IBGE apurou que o volume de mulheres negras que ficou sem nenhum trabalho, formal ou informal, durante a pandemia é o dobro em relação ao de homens brancos na mesma situação.
E mesmo quando estão empregadas, as mulheres negras são o grupo em maior desvantagem no mercado: elas recebem os menores salários na comparação com qualquer outro grupo populacional.
Um levantamento feito em 2020 pelo Inspe entre profissões qualificadas – engenheiros, arquitetos, médicos, professores, administradores e cientistas sociais -, descobriu que, em todas elas, as mulheres negras recebem menos do que homens (brancos e negros) e menos também do que mulheres brancas.
Um dos abismos mais evidentes apurado pela pesquisa foi observado na Medicina. Entre os médicos formados em universidades públicas, as mulheres negras têm um salário médio de R$ 6.370,30, enquanto os homens brancos ganham R$ 15.055,84 – uma remuneração duas vezes e meia acima da das médicas negras.
Essa situação fática prova por exemplo que, 34 anos depois de promulgada nossa Carta Magna, a República Federativa do Brasil não cumpriu seus objetivos fundamentais determinados no artigo 3º, que são os de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (inciso I), “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (inciso III), e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso IV).
E a situação ainda mais trágica está no território da violência.
O Atlas da Violência 2021, produzido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou que a população negra brasileira tem probabilidade 2,6 vezes maior de ser assassinada. No ano de 2019 foram vítimas de homicídio no Brasil 34,4 mil negros e 10,2 mil brancos.
Quando o assunto é feminicídio, um tipo de crime de ódio de gênero em que nosso país tristemente se destaca no mundo, a mulher negra também é o principal alvo.
O levantamento de 2020 do Monitor da Violência, feito numa parceria entre o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou que, das 1.890 mulheres assassinadas no primeiro semestre daquele ano, 631 foram vítimas de ódio feminicida e nada menos que 73% delas eram mulheres e meninas negras.
O ódio racial verbalizado
Um dos crimes mais cotidianos que atinge a população negra brasileira é a injúria racial, uma modalidade de ofensa à dignidade de alguém com base em elementos referentes à sua raça, cor, etnia, religião.
Embora não existam dados estatísticos nacionais sobre esse crime, um levantamento divulgado em 2017 pela Secretaria de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos (SEDHMI) do Rio de Janeiro – com base nas estatísticas do Instituto de Segurança Pública (ISP) -, mostrou que as mulheres negras representaram 60% do número de vítimas do crime de injúria racial naquele estado em 2016.
E assim como o feminicídio é o desfecho extremo de um ódio cujos primeiros sinais são um empurrão, um xingamento, um tapa, as ofensas ou frases jocosas dirigidas às pessoas de pele negra são somente o primeiro passo para indivíduos racistas se sentirem à vontade para escalar para a violência física ou letal contra elas.
Por isso, é papel de toda a sociedade dar um basta, denunciando qualquer manifestação racista contra quem quer que seja. É assim que faremos os racistas compreenderem que o racismo é inaceitável, e que esse comportamento não cabe no padrão civilizatório que desejamos como Nação.
O que é o crime de Injúria Racial?
Para entender o tipo penal da “injúria racial”, é preciso antes saber diferenciar os crimes de “injúria” e de “racismo”.
O Código Penal, em seu artigo 140, descreve o delito de injúria, que consiste na conduta de ofender a dignidade de alguém – e prevê, como pena, a reclusão de 1 a 6 meses ou multa.
O crime de injúria racial está previsto no parágrafo 3º do mesmo artigo 140 que tipifica o crime de injúria. Trata-se, portanto, de uma forma de injúria qualificada, para a qual a pena é maior – e não se confunde com o crime de racismo.
Os crimes de racismo estão previstos na Lei 7.716/1989, que foi elaborada para regulamentar a punição de crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, conhecida como Lei do Racismo.
O que diferencia os crimes é o direcionamento da conduta.
Enquanto na injúria racial a ofensa é direcionada a um indivíduo especifico, no crime de racismo a ofensa é contra uma coletividade – por exemplo, a toda a raça negra, sem especificação de indivíduo ofendido.
Para a caracterização do crime de injúria racial é necessário que haja ofensa à dignidade de alguém, com base em elementos referentes à sua raça, cor, etnia, religião, idade ou deficiência. A adição do elemento racial faz com que a pena aplicada para o crime de injúria seja maior, 1 a 3 anos de reclusão.
Código Penal – Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940
Injúria
Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003) Pena – reclusão de um a três anos e multa. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 1997)
Fui vítima ou testemunhei um crime de injúria racial. Como faço para denunciar?
- Enquanto o crime está acontecendo: se o crime estiver acontecendo naquele momento, a vítima pode chamar a Polícia Militar. Ligue 190, de qualquer telefone (mesmo sem crédito no celular). O atendimento funciona 24 horas por dia.
Se for possível fazê-lo sem risco à sua integridade, permaneça no local em que o crime ocorreu e procure identificar testemunhas presentes que possam se apresentar às autoridades.
Além de fazer parar a agressão, a Polícia Militar pode prender o (a) agressor (a) em flagrante.
Após a prisão em flagrante do(a) agressor(a) pela Polícia Militar, todos os envolvidos serão conduzidos à Delegacia de Polícia mais próxima. Se você não for vítima, mas testemunha, registre. Filme, grave; incentive a vítima a denunciar e chamar a Polícia. Seus registros servirão como prova e ajudarão a pessoa ofendida a demandar punição e indenização.
2. Se o crime já aconteceu:
O primeiro passo é ter em mão todas as informações e provas que podem corroborar os seus relatos tais como: fotos, vídeos, reportagens que tenham noticiado o fato, os dados disponíveis do agressor (como nome e, se possível, endereço, telefone) e de quem eventualmente tenha testemunhado os acontecimentos. É importante procurar lembrar de todos os detalhes do local e do modo como foi praticado o crime de injúria racial.
O segundo passo para a vítima de injúria racial será se dirigir à Delegacia de Polícia Civil mais próxima da região onde ocorreu o crime e registrar a ocorrência, comparecendo, se possível, em companhia das testemunhas e acompanhada das provas que conseguir reunir.
É possível fazer a queixa em delegacias comuns ou especializadas – mas se na sua região houver a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), é preferível que se faça a ocorrência neste centro policial especializado.
É importante saber que o crime de injúria racial é afiançável, a promoção da ação penal é pública condicionada à representação e a pretensão punitiva da pena prescreve em oito anos a partir da data do fato (artigo 109, IV, Código Penal).
Isso significa que, como esse tipo de delito é uma ação condicionada à representação da vítima, ela mesma terá que denunciar as injúrias raciais que sofreu para dar prosseguimento a uma futura ação criminal.
No registro da ocorrência, a vítima de injúria racial deverá: (1) contar as injúrias que sofreu com o máximo de detalhes; (2) fornecer nomes e contatos das testemunhas; (3) solicitar ao agente para incluir na queixa que deseja que o agressor seja processado criminalmente.
Atenção! Se o policial responsável pelo atendimento autuar apenas um Termo Circunstanciado, insista que o crime de racismo e o crime de injúria racial (forma qualificada) não são delitos de menor potencial ofensivo e não se enquadram na Lei n.º 9.099 de 1995.
Isso porque a orientação da cartilha do Ministério da Justiça e cartilhas de Ministérios Públicos estaduais é clara ao destacar que, se o agente policial registrar a denúncia como um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), a vítima pode insistir que o crime não é de menor potencial ofensivo e que deve ser investigado por meio de inquérito.
Ao final do atendimento, solicite uma cópia do Registro de Ocorrência Policial e guarde-a com você para os futuros passos.
3. Providências para uma ação criminal posteriores a denúncia da vítima:
Após o regular registro do boletim de ocorrência policial perante alguma das Delegacias de Polícia Civil, a vítima deverá procurar um (a) profissional da Advocacia, regularmente habilitado (a), se tiver recursos para fazê-lo. Ou comparecer ao Núcleo contra a Desigualdade Racial da Defensoria Pública ou ao órgão da Defensoria mais próximo de sua residência, munido da sua documentação pessoal (RG, CPF, comprovante de residência), do Registro de Ocorrência Policial e ainda das demais provas que estiverem disponíveis (fotos, vídeos, nome, telefone e endereço de testemunhas etc.).
Além de oferecer orientação jurídica para o acompanhamento da investigação e do possível processo criminal contra o (a) agressor (a), o (a) profissional da Advocacia ou Defensoria Pública poderá promover ação civil para o pagamento de indenização, pelos danos morais e materiais causados pelo comportamento racista.
4. Crimes praticados através do ambiente digital: em caso de crimes raciais praticados em meio digital, copie o link da publicação discriminatória e salve em print screen tanto a publicação quanto o perfil utilizado do (a) agressor (a).
Na sequência, siga o segundo e terceiro passos descritos acima.
5. Denúncia pelo telefone: o governo federal tem o Disque Direitos Humanos – Disque 100, em que é possível apresentar denúncias de racismo e discriminação.
O Departamento de Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos tem a competência de receber, examinar e encaminhar denúncias e reclamações, atuar na resolução de tensões e conflitos sociais que envolvam violações de direitos humanos, além de orientar e adotar providências para o tratamento desses casos, podendo agir de ofício e atuar diretamente ou em articulação com outros órgãos públicos e organizações da sociedade.
As denúncias poderão ser anônimas ou, quando solicitado pelo denunciante, é garantido o sigilo da fonte das informações.
O principal canal de comunicação da Ouvidoria é o Disque Direitos Humanos – Disque 100, serviço de atendimento telefônico gratuito, que funciona 24 horas por dia, nos 7 dias da semana.
As denúncias recebidas na Ouvidoria e no Disque 100 são analisadas, tratadas e encaminhadas aos órgãos responsáveis. Vale ressaltar essas últimas modalidades de denúncia não serão consideradas para fins de inquérito policial dos crimes de injúria racial ou ação criminal por tal modalidade delitiva, já que, conforme anteriormente explicado, para estas providências é necessária a denúncia e representação pessoalmente da vítima.
Excelente artigo. Não apenas instrutivo sobre a legislação protetiva contra atos de discriminação racial e injúria racial. Trata-se de um manual de ação antirracista, com um relato detalhado das medidas a serem tomadas por vítimas e testemunhas desses atos discriminatórios. Uma verdadeira cartilha antirracista que serve para inspirar agentes públicos dos 3 Poderes da República nos planos federal e estadual. Digo isso com conhecimento de causa. Além de ex-membro do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas até recentemente, dedico atenção acadêmica ao tema há anos, além de atuar no campo da diplomacia multilateral. Parabéns, Dra Luma!