Mendigo de Planaltina: o caso em que um país aplaude a violência

Segundo consta do Boletim de Ocorrência registrado na noite de 9 de março de 2022 no Jardim Roriz, em Planaltina, no Distrito Federal, a situação que chocou o Brasil e viralizou nas redes sociais envolvia três, entre eles uma esposa, então com 33 anos que havia saído com a sogra em missão de evangelização para fazer doações e caridades; o marido, personal trainer, que estranhou o retorno da sua mãe sem sua esposa e que, diante a demora de algumas horas, resolveu sair a sua procura.

No caminho, o marido, relatou perante o registro da ocorrência policial que encontrou o carro da esposa estacionado e, quando se aproximou, viu que ela fazia sexo com o sem-teto – e eis que chegamos ao terceiro indivíduo: uma pessoa em situação de rua, homem de 48 anos.

O que se sabe dos fatos, conforme relatado pelas partes, foi que o marido, espantado com a situação, alegou acreditar que a mulher sofria violência sexual, e que por isso, agindo em defesa da sua esposa, começou a agredir o terceiro envolvido já fora do veículo. O momento foi registrado por câmeras de segurança, mostrando marido, ora acusado, proferindo socos e chutes.

A Polícia Militar do Distrito Federal foi acionada para atender a ocorrência, informada inicialmente como sendo uma situação de estupro. Os envolvidos apresentavam informações desencontradas sobre o ocorrido aos militares.

Os três envolvidos foram levados para o Hospital Regional de Planaltina, pelo Corpo de Bombeiros Militar —segundo e terceiro envolvidos ficaram feridos, e a primeira envolvida estava em estado de choque. O segundo envolvido foi liberado em seguida, enquanto a primeira envolvida foi encaminhada para tratamento médico psiquiátrico especializado, e o terceiro envolvido precisou de cuidados médicos mais apurados.

Não se sabe ao certo como as informações daquela noite chegaram tão rapidamente ao público, com uma riqueza de detalhes impressionante, imagens e vídeos exclusivos do momento do ocorrido, fotos e identidades dos envolvidos reveladas, e até mesmo áudios dos depoimentos dados no hospital enquanto se fazia a amnamnese.

O que certamente se sabe é que o alcance da Internet – que tem o poder de propagar informações a milhões de pessoas em poucos minutos – mostrou sua força naquele momento e, em poucos minutos, como não se podia esperar diferente, toda aquela situação de ocorrência policial – e os três envolvidos viraram memes em todas as redes sociais populares no país.

No contexto da Internet, meme é uma mensagem quase sempre de tom jocoso ou irônico que pode ou não ser acompanhada por uma imagem ou vídeo e que é intensamente compartilhada por usuários nas mídias sociais. O termo foi cunhado pelo zoólogo Richard Dawkins em sua obra O gene egoísta, de 1976, para fazer uma comparação com o conceito de gene. Assim, para Dawkins, meme seria “uma unidade de transmissão cultural, ou de imitação”, ou seja, tudo aquilo que se transmite através da repetição, como hábitos e costumes dentro de uma determinada cultura.

Adaptado para a Internet, especialmente para as redes sociais, o conceito de meme passa a ser uma “unidade” propagada ou transmitida através da repetição e imitação, de usuário para usuário ou de grupo para grupo.

Seguindo esse conceito de meme, e tendo sua imagem propagada por diversas vezes, por diversos grupos e em diversos ambientes das redes sociais, que hoje se constitui como uma extensão da vida social dos indivíduos em comunidade, as partes sentiram a necessidade de se pronunciar.

De maneira surpreendente o marido, que passou a ser ridicularizado por ter sofrido uma situação de adultério que envolvia a sua esposa e uma pessoa em situação de rua, passa a ser a pessoa mais sensata e consciente dentre todos os envolvidos – até mesmo que nós, que apenas rimos e compartilhamos os memes.

Ele veio ao público, como pessoa que convive com a sua esposa já há três anos, a fim de afirmar que ela não estaria em suas plenas faculdades mentais, que não tinha capacidade de discernir sobre teus atos naquela noite, e que ao invés de estarmos preocupados em fazer piada com a situação e expor e ridicularizar mais ainda aquela mulher deveríamos estar preocupados com sua integridade mental e sua plena recuperação e retorno a sua vida em sociedade.

No final do seu depoimento dado à imprensa o marido ainda afirmou que, sim, continuaria casado com sua esposa e apoiando-a em sua recuperação e reintegração a rotina logo após que ela saísse do internamento.

Da esposa, a pessoa que deu causa a toda aquela situação, não por culpa própria ou intenção de se tornar o que se tornou, nada se ouviu. De fato, os depoimentos prestados e indevidamente divulgados por ela, em atendimento médico-hospitalar que devia ser sigiloso, vem a corroborar com os depoimentos do marido: falas desconexas que não encontram lógica ou coerência com o estado de uma pessoa que possui plena faculdade da sua sanidade mental. Ela se encontra atualmente internada em uma clínica psiquiátrica em observação e cuidados de médicos e profissionais especialistas.

Do terceiro envolvido, o homem em situação de rua, se antes era aclamado como o “herói” ou o “gostosão” de toda história, com seus últimos depoimentos a imprensa, de formar a se vangloriar de toda o drama envolvendo o casal, vem ganhando notoriedade com suas entrevistas que envolvem riqueza de detalhes de cunho sexual, exposição da intimidade da mulher, e comentários vulgares que pôs a perder todo o tom de comédia ou irreverência dada a situação e passam a retratar a fiel sociedade machista, sexista, psicofóbica e com parca consciência política que é a sociedade em que vivemos.

Os que ainda riem, e tentam ainda tirar qualquer apelo midiático com a continuidade da exposição da situação dos envolvidos vão dizer: “lá vem a militante, fazer militância”.

Mas como não se manifestar, em repúdio, enquanto o Brasil inteiro assiste uma mulher internada em uma clínica psiquiátrica, com laudo assinado por um médico especialista comprovando que ela não está em plenas faculdades mentais, de um lado, e do outro há um homem que se vangloria de ter feito sexo com ela, expondo-lhe detalhes sobre seu corpo, aparência e sensualidade bem como o ato sexual, íntimo e privado com riqueza de detalhes, para quem quiser ouvir?

E pasmem! Como não se indignar com toda essa situação vendo este fato esdrúxulo, que perpassou todos os limites jurídicos e morais de exposição da vida intima e privada, de todos os envolvidos, sendo usada como uma campanha eleitoral para defesa de posicionamentos políticos e captação de votos por alguns partidos?

Me desculpem, eu não gosto de ser a estraga-prazeres, mas os fatos devem ser expostos: toda essa situação já passou de meme ou de alívio cômico para os problemas que o mundo enfrenta – que envolvem desde Covid-19, o conflito armado na Ucrânia –, para um caso muito sério de psicofobia e violência contra a mulher, assim como não vejo a razão do apelo político, já que a administração pública e a gestão de políticas públicas e estatais não são palco de stand-up comedy.

Uma mulher é covardemente julgada, sem oportunidade de defesa, seja pela opinião pública ou pelos mecanismos judiciais, se diz muito mais do que os fatos que levaram aquela mulher aquele julgamento. Porque cada vez que a punição sem garantias, especialmente as constitucionais, tira de uma mulher a liberdade, para jogá-la na estigmatização, na penitência, no exilo, se está legitimando não apenas o Estado de Exceção que vivemos desde o golpe na democracia, mas principalmente se evidencia qual o papel que se dará às mulheres neste Estado.

No caso da mulher, o julgamento antes de tudo é moral! Fruto do machismo imperante na sociedade, que a encara como ser submisso, responsável pelos afazeres domésticos e educação dos filhos, o estigma que recai sobre a mulher adúltera é muito mais negativo quando comparado àquele que atinge o homem, já que ultrapassa o julgamento do fato adultério para atingir a questão do próprio gênero.

Se formos analisar todo a situação veremos que: apesar de tido como imoral, o adultério não é crime, e a mulher tem o direito de praticar atos sexuais como quem bem entender, inclusive com um morador de rua, já que ele próprio confirmou o consentimento com o ato. Então por quê o julgamento? Por que a ridicularização?

Mas é óbvio que não seria diferente, ainda que a mulher tivesse cometido um crime, o qual ela não cometeu, se somos uma sociedade que não só violenta e mata mulheres, mas que as condena quando são vítimas e também quando são supostas agentes de crimes, principalmente se forem negras e pobres, prisioneiras somos todas nós. A questão aqui é que apenas algumas pagam o preço na carne, com suas vidas e liberdades.

Mais alarmante se faz ainda o fato que vem sendo ignorado, essa mulher que vem sendo reiteradamente exposta está sofrendo de quadro de doença psiquiátrica, e merece sua devida proteção por esta situação especial.

O Projeto de Lei do Senado número 74 de 2014 alterou a Lei no 7.853, de 1989, para tipificar crimes contra pessoas com deficiência ou com transtorno mental, bem como o Decreto-Lei no 2.848, de 1940 (Código Penal), para tornar qualificado o crime cometido contra as pessoas com transtorno mental.

Da mesma forma, faz parte das recentes alterações no Código Penal na parte de Crimes contra a Dignidade Sexual o capítulo I-A, denominado “Da exposição da intimidade sexual”, e em seu artigo 216-B dispõe que:

Art. 216-B.  Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.

Então, lembrem-se quando vocês estiverem aclamando o terceiro envolvido nesta situação, que talvez vocês possam estar endeusando um possível criminoso e batendo palmas para condutas previstas na lei nacional como crime.

exposição da intimidade sexualmendigo de planaltinaMulherpsicofobiaviolência contra mulher
Comentários (4)
Adicionar comentário
  • Silvio Albuquerque

    Parabéns, Dra Luma, pela defesa coerente e sólida do respeito à dignidade humana, princípio fundamental sobre o qual se encontra edificado toda a arquitetura de proteção aos diretos humanos.

  • Acacia

    parabéns! ???

  • Bartira

    Infelizmente um tema privado que caíu na esfera pública quando o marido decidiu espancar o mendigo publicamente e gerar indignação e revolta…as pessoas,claro, tomaram a defesa do mendigo espancado, a mídia deu dimensão estratosféricas e o caso tomou proporções nacionais: todos pelo pobre mendigo espancado, …Já era… a internet não perdoa, o mendigo virou a vítima é por ser um ‘cara legal, apenas à margem da sociedade, a mídia está abraçando. Aconselho a todos a entrevista da Metrópole, lá os repórteres armaram por dias uma verdadeira campana para conseguir entrevistar o mendigo, que, narra os fatos cruamente, sem maldade alguma, ou qualquer intensão de se vangloriar, afinal, trata-se de um andarilho, meio lunático, que também não pode ser julgado como estando em plenas faculdades mentais. Os reportares ficaram absolutamente encantados com a pureza, a inocência e a cultura do mendigo, que chegou a citar Nietzsche e se diz um amante dos livros

  • jennifer

    juiz bater o martelo ai paro de plaudir nem sandra nao foi depor ja estao condenando o mendigo vi delegado dando entrevista na tv disse que esta investigando que mendigo è vitima nao podemos antecipar assim pode ser mais um perde vida por comentarios virtual ja vi gente perdeu vida por ser julgado sem ter provas era nocente misericordia,,