A violência contra mulheres e meninas e as mudanças climáticas são duas das emergências globais mais prementes, e dos maiores desafios de desenvolvimento sustentável do nosso tempo. É o que reconhece a Organização das Nações Unidas (ONU) no relatório “Enfrentando a violência contra mulheres e meninas no contexto das mudanças climáticas”, lançado este ano.
Este é um blog ecofeminista. E, como tal, tem esses dois temas como centrais em nossa agenda de esclarecimento, divulgação, advocacy, sensibilização dos internautas e leitores que passam por aqui.
Não poderia, pois, haver outro tópico para encabeçar aqui este Agosto Lilás, que é o mês da campanha brasileira anual de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher. A campanha foi criada na esteira da promulgação da Lei Maria da Penha, o mais importante instrumento jurídico de enfrentamento desse tipo de violência no Brasil.
E, infelizmente, apesar da legislação avançada de proteção à mulher promulgada desde 2006, a violência doméstica contra elas só tem aumentado no país – outro tema que temos reiteradamente denunciado neste blog.
Entre 2020 e 2021, números do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), tabulados pelo Instituto Santos Dumont (ISD), mostram que o volume de delitos contra as mulheres triplicou, passando de 271.392 registros para 823.127 – e, entre essas violações, está a forma mais extrema de violência: o feminicídio. Em uma comparação com 83 países, o Brasil possui taxa média de 4,8 assassinatos a cada 100 mil mulheres, ocupando assim o 5º lugar no ranking mundial de feminicídios.
As interseções entre gênero e clima, no entanto, recebem um foco muito menor, e são também muito menos compreendidas – mesmo com os esforços empreendidos na última década pelos especialistas e organizações internacionais.
O que violência contra a mulher tem a ver com mudança climática?
A violência contra mulheres e meninas é a violação de direitos humanos mais difundida e generalizada em todo o mundo, afetando mais de uma em cada três mulheres ao longo da vida, afirma a Organização Mundial de Saúde (OMS). Globalmente, 81 mil mulheres e meninas foram mortas apenas em 2020, e uma mulher ou menina foi morta em sua casa a cada onze minutos, contabilizou o Escritório para Drogas e Crimes das Nações Unidas (UNODC).
As mudanças climáticas estão ameaçando a sustentabilidade do planeta com impactos sociais, culturais, econômicos, de saúde e direitos humanos devastadores, que afetam mulheres e meninas de forma desproporcional – especialmente os grupos mais marginalizados (negras, indígenas, agricultoras, LGBTQIA+, mulheres em situação de pobreza). “A pandemia sombria de violência contra mulheres e meninas durante a COVID-19 é um exemplo da onda de violência contra elas que pode ocorrer durante crises e desastres”, aponta a ONU.
Estudos e registros em todo o mundo já demonstram, com dados científicos, que as mudanças climáticas e a gradual degradação ambiental acentuam os riscos de agressões contra mulheres e meninas devido, por exemplo, a deslocamentos forçados, escasseamento de recursos, insegurança alimentar ou interrupção do fornecimento de serviços essenciais a sobreviventes de desastres climáticos – como inundações, secas, furacões, tornados.
Na esteira do furacão Katrina, que teve efeitos trágicos sobre o Sudoeste americano em 2005, a taxa de estupros no estado do Mississipi aumentou 53,6 vezes naquele ano – e as principais vítimas foram as mulheres e meninas desabrigadas pelo furacão que foram alocadas pelo governo em trailers em áreas públicas.
Situação similar enfrentaram as mulheres e meninas de Porto Rico após o furacão Maria, de 2017, quando ONGs como a Escape, que operam na assistência e prevenção da violência de gênero no país, receberam 62% mais pedidos de socorro que o usual, todos vindos das comunidades afetadas: sem energia nem serviços de telecomunicações devido à catástrofe, as vítimas ficaram sem contato com as autoridades policiais e viraram alvo mais fácil dos abusadores.
Em Bangladesh, uma pesquisa de campo conduzida após o ciclone Sidr em 2007 apontou um aumento do tráfico de mulheres e meninas oriundas dos distritos afetados pela calamidade. Em seu relatório “O nexo entre as mudanças climáticas e o tráfico humano”, de 2016, a Organização Internacional para Migração descobriu que redes criminosas passaram a operar na região afetada pelo desastre, mirando sobretudo em viúvas, homens desesperados para cruzar a fronteira para encontrar emprego e renda na Índia – e, às vezes, famílias inteiras.
As vítimas do tráfico eram forçadas a prostituição e trabalho pesado, inclusive em sweatshops ao longo da fronteira com a Índia (sweatshops são fábricas, geralmente têxteis, nas quais os funcionários trabalham em regime análogo à escravidão).
Após o terremoto de magnitude 7,8 que devastou Katmandú, no Nepal, a taxa detectada de tráfico humano no país aumentou de 3 mil a 5 mil em 1990 para de 12 mil a 20 mil pessoas a partir de 2015; as famílias em desespero recebiam ofertas de vender seus filhos por $500 dólares. O relatório sobre Tráfico de Pessoas da Comissão de Direitos Humanos do Nepal estimou em 2020 que cerca de 35 mil pessoas, entre elas 15 mil mulheres e 5 mil meninas, foram vítimas desse crime entre 2015 e 2018.
O impacto do escasseamento de recursos sobre as mulheres
A degradação ambiental gradual ou o desponte de eventos climáticos – como chuvas mais intensas ou secas mais prolongadas que levam ao fracasso das colheitas, perdas na pecuária e à consequente insegurança alimentar -, também exacerbam a violência contra mulheres e meninas. Isso porque elas são, em geral, mais dependentes dos recursos naturais e do clima na medida em que têm a responsabilidade primária de coletar água, lenha ou alimentos para sustentar a família.
Incluem-se nesse rol o casamento infantil e a exploração sexual. Quando as famílias estão lutando para lidar com a escassez de alimentos, as meninas podem ter que abandonar a escola para ajudar a garantir a subsistência da família, e o casamento infantil pode ser usado como estratégia de sobrevivência.
Em alguns casos, onde os homens precisam sair de casa para buscar renda e gerar atividades em outros lugares, mulheres e meninas ficam mais vulneráveis à exploração sexual.
Alguns estudos já detectaram situações em que comerciantes de alimentos, agricultores e proprietários de terras tiram vantagem da escassez de recursos exigindo sexo das mulheres em troca de comida – conforme testemunharam, por exemplo, três profissionais do Programa de Desenvolvimento da ONU (UNDP) que viveram temporariamente em comunidades rurais de Uganda.
Na Etiópia, o levantamento “Horn of Africa: a call for action”, lançado pela Unicef em 2017, reportou como consequência das secas prolongadas o aumento no número de crianças entregues para casamentos prematuros em troca de cabeças de gado.
A violência contra mulheres que são ativistas ambientais
Mulheres defensoras de direitos ambientais, sobretudo as mulheres indígenas, são particularmente vulneráveis a crescentes ameaças e atos de violência de gênero – incluindo estigmatização e até feminicídio – por buscarem proteger recursos naturais da terra e das águas da exploração insustentável pelo Estado e dos interesses corporativos.
Além das indígenas, as ameaças são frequentes também contra mulheres afrodescendentes, pessoas LGBTQIA+, mulheres com deficiência, mulheres migrantes e aquelas que vivem em áreas rurais ou remotas e propensas a conflitos e desastres.
O relatório “Defensores da linha de frente – análise global 2020” revelou que, em 2020, pelo menos 331 defensores de direitos humanos foram mortos, incluindo 44 mulheres; 69% dessas vítimas de assassinatos eram defensoras da terra, dos povos indígenas e/ou dos direitos ambientais – outros 28% eram ativistas dos direitos das mulheres. Entre 2016 e 2019, constatou o levantamento, foram registrados 1.698 ataques contra mulheres ambientalistas no México e na América Central.
Especificamente sobre o Brasil, o relatório destacou:
“Os povos indígenas da Amazônia foram colocados em risco por atores envolvidos na extração ilegal de madeira, pecuária ou mineração – que usualmente vinham sendo enfrentados em oposição pacífica. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro continuou a conceder concessões para empresas. Os defensores indígenas enfrentaram um risco duplo nessas circunstâncias, pois foram alvos desses agentes e também submetidos ao risco de contrair COVID-19 introduzida em seus territórios por pessoas de fora. De acordo com o relator especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, ‘aqueles povos indígenas em isolamento voluntário, muitos deles na Amazônia, que têm menor imunidade a doenças, podem desaparecer facilmente se uma pessoa infectada entrar em suas comunidades’. As comunidades indígenas brasileiras foram particularmente atingidas, com pelo menos 930 indígenas tendo morrido pelo vírus. No meio da pandemia, a Amazônia viu um aumento nos níveis de desmatamento pelo segundo ano consecutivo, atingindo uma alta de 12 anos. Em outubro de 2020, o Brasil já havia igualado a quantidade de desmatamento que ocorreu em todo o ano de 2019. Enquanto o presidente Bolsonaro elogiou o Brasil perante a ONU como tendo uma das melhores legislações ambientais do mundo, em casa ele se referiu-se às ONGs ambientais como um ‘câncer difícil de matar’ em sua transmissão online semanal no início de setembro.”
Ressalte-se que as mulheres defensoras de direitos humanos ambientais não só estão expostas aos mesmos riscos e tipos de violência que os defensores de direitos humanos masculinos por seu trabalho para proteger o meio ambiente e os recursos naturais. Elas também enfrentam riscos específicos de gênero e manifestações de violência enraizadas na misoginia, nas normas sociais, na discriminação de gênero e na desigualdade. Essas manifestações incluem estupro e outras formas de violência sexual, violência psicológica e online para minar sua credibilidade e intimidá-las.
Como enfrentar a violência contra mulheres e meninas no contexto ambiental?
O Acordo de Paris no âmbito da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (UNFCCC) e o Pacto Climático de Glasgow reconhecem a centralidade da igualdade de gênero e empoderamento das mulheres, mas não abordam especificamente a violência contra mulheres e meninas.
Permanecem lacunas significativas no que se refere a vincular as mudanças climáticas e a violência de gênero; faltam pesquisas, políticas, programas e o estabelecimento de parcerias intersetoriais para o enfrentamento conjunto da mudança climática e da violência contra a mulher.
São escassos os dados e pesquisas que visem melhor compreender a gravidade e o escopo do problema, os riscos e os fatores de proteção, e também como a violência contra mulheres e meninas interfere nos esforços de resiliência e de recuperação do meio ambiente. Tais dados seriam fundamentais para informar o estabelecimento de soluções eficazes.
Mas os diversos acordos, convenções e tratados internacionais sobre direitos humanos, direitos ambientais e direitos das mulheres à igualdade de tratamento e de proteção pelas sociedades contêm normas, recomendações e sugestões de políticas – que, se seguidas pelos países signatários, blindariam as mulheres e freariam a tragédia ambiental atual.
O documento “Direitos Humanos, Meio Ambiente e Igualdade de Gênero” contém um roteiro de recomendações que colocam esses tratados como norteadores para as políticas e medidas intersetoriais; e o Brasil é signatário de praticamente todos esses pactos, convenções e acordos.
São 17 as recomendações dirigidas aos governos dos países:
- Respeitar, proteger e cumprir o direito de mulheres, homens, meninas, meninos e pessoas com diversas identidades de gênero a um ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável.
- Todos esses direitos já estão consagrados no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC); na Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), e na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres.
- Tomar medidas urgentes e ambiciosas especificamente relacionadas a gênero para combater crises ambientais.
- O Acordo de Paris, a Convenção sobre Diversidade Biológica e a Convenção de Combate à Desertificação, bem como vários outros acordos ambientais multilaterais, incluem compromissos para alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e o reconhecimento da importância do envolvimento das mulheres nas respostas às mudanças climáticas, biodiversidade conservação e uso sustentável e preservação da terra. É essencial que os Estados tomem medidas imediatas e ambiciosas para responder às crises ambientais interligadas, de uma forma que esteja consciente e procurando abordar os impactos de gênero.
- Prevenir a discriminação de gênero em questões ambientais.
- A discriminação de gênero é proibida por todas os principais tratados internacionais de direitos humanos. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres exige que os Estados tomem medidas para alterar ou considerar a revogação de leis, regulamentos, costumes e práticas que constituem discriminação baseada em gênero, incluindo violência contra a mulher. Para endereçar a discriminação e a violência de gênero no contexto ambiental, os Estados devem revisar, alterar ou revogar leis, políticas e práticas que criam ou sustentam impactos ambientais diferenciados com base no gênero. Eles devem reduzir a desigualdade relacionada à propriedade da terra, posse e acesso a recursos, e fortalecer o papel das mulheres em conservação, administração e gestão ambiental.
- Compreender e abordar os efeitos das múltiplas formas intersecionais de discriminação.
- Em sua Recomendação Geral nº 37, o Comitê de Eliminação da Discriminação contra as Mulheres reconhece que as crises ambientais agravam as desigualdades de gênero existentes e compõem formas de discriminação que se cruzam, incluindo aquelas com base em: classe econômica ou social; casta, etnia, raça, religião ou indigeneidade; incapacidade; idade; situação de migração; orientação sexual, identidade de gênero ou características sexuais. Ao elaborar as leis ambientais, políticas e práticas, os Estados devem procurar abordar as desigualdades sistêmicas intersetoriais, e tomar medidas concretas para eliminar as barreiras de participação e liderança sobre mulheres que enfrentam a marginalização interseccional e a discriminação. Tais medidas podem incluir a garantia de igualdade de acesso à informação, participação e recursos; o investimento em sistemas de proteção e de assistência social sensível ao gênero; o empoderamento e a capacitação.
- Acabar com os estereótipos nocivos de gênero relacionados ao meio ambiente.
- O artigo 5º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres exige ação do Estado com o objetivo de eliminar ideias de inferioridade ou superioridade de qualquer sexo, e todos os estereótipos de gênero. No contexto da degradação ambiental, tais estereótipos podem criar riscos significativos para os direitos humanos. Em coerência com os compromissos contraídos sob o Artigo 5 da Convenção, os Estados devem tomar medidas concretas para eliminar estereótipos nocivos de gênero, não apenas para proteger os direitos humanos, mas também para garantir um ambiente seguro, saudável, limpo e sustentável para todos.
- Garantir a participação igualitária, livre, ativa, significativa e informada das mulheres nos processos de tomada de decisão relacionados ao meio ambiente.
- Instrumentos internacionais e regionais de direitos humanos, incluindo o PIDCP, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Declaração das Nações Unidas sobre o Direito ao Desenvolvimento, a Convenção de Aarhus e o Acordo de Escazú consagram o direito à participação feminina igual, livre, ativa, significativa e informada nos processos de tomada de decisão. O envolvimento das mulheres na tomada de decisões ambientais em todos os níveis também é um objetivo estratégico da Plataforma de Ação de Pequim.
- Respeitar, proteger e cumprir os direitos das mulheres defensores dos direitos ambientais.
- Garantir um acesso à justiça que seja sensível ao gênero e de responsabilização por danos ambientais.
- Adotar uma abordagem de gênero para garantir o direito à saúde, incluindo a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, na ação ambiental.
- Abordar a violência de gênero no contexto de crises ambientais.
- Garantir transição para uma economia verde que seja justa e focada em gênero.
- Garantir a igualdade de propriedade, acesso e benefícios de recursos para mulheres e pessoas com identidades de gênero diversas.
- Assegurar o direito de todas as pessoas, incluindo as mulheres, de usufruir dos benefícios da ciência e suas aplicações.
- Proteger mulheres e meninas contra os impactos de gênero causados por danos das empresas ao meio ambiente.
- Todos os Estados têm o dever de proteger contra abusos de direitos humanos praticados por empresas em seu território e/ou jurisdição; além disso, conforme detalhado nos Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos (UNGPs), todas as empresas têm a responsabilidade de respeitar os direitos humanos.
- Assegurar os direitos de todas as pessoas, incluindo mulheres e pessoas com identidades de gênero diversas, à educação com respeito ao meio ambiente natural
- Coletar e usar dados desagregados por gênero para informar ações e políticas ambientais
- Cooperar internacionalmente para aprimorar ações e políticas ambientais sensíveis ao gênero.
Excelente análise. Dois dos temas mais importantes da realidade internacional contemporânea, as mudanças climáticas e os direitos da mulher, são tratados de forma original deixando evidente sua complementaridade.