- Por Ludmilla Duarte
O Relatório Figueiredo é um documento histórico de sete mil páginas e 29 volumes produzido em 1967 durante o governo do general Costa e Silva (o mesmo do AI-5) graças à obstinação de um daqueles heróis improváveis: o então Procurador-Geral da República Jader de Figueiredo Correia. Em um país com vergonha na cara e autoestima na alma, a história teria virado filme e recebido indicação a Oscar, Cannes e Urso de Ouro.
Obedecendo a uma incumbência do então ministro do Interior Albuquerque Lima para apurar denúncias de violência contra povos indígenas, Figueiredo não se fez de rogado: ele e sua equipe cobriram mais de 16 mil quilômetros e visitaram mais de 130 postos indígenas em todo o país.
O resultado foi uma magistral, minuciosa e inequívoca descrição de matanças, torturas e envenenamentos de tribos inteiras – perpetrados não nos idos do século 16 por aqueles europeus que desembarcaram fedidos e doentes das caravelas, mas nos anos 1960 da televisão em cores, da inauguração da emissora do plim-plim no Brasil, quando a Petrobras já contava seus 15 anos de criada. E quase 20 anos depois de o Brasil já ter assinado a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Latifundiários e agentes do Serviço de Proteção ao Índio, em um conluio para liberar terras dentro de um “projeto estratégico de ocupação do território brasileiro”, protagonizaram caçadas humanas feitas com máquinas, armas e dinamite lançada de aviões; injetaram o vírus da varíola em populações indígenas isoladas; doaram açúcar misturado com estricnina (talvez para matar poupando munição).
O relatório produzido pelo Procurador-Geral traz os depoimentos de dezenas de testemunhas, anexa centenas de documentos; cada um dos crimes está caprichosamente identificado – assassinato, prostituição de mulheres indígenas, extrema crueldade, trabalho escravo, apropriação e desvio do patrimônio e dos recursos indígenas.
Em entrevistas, o filho de Figueiredo, que é advogado, disse mais recentemente que o pai teria contado, em casa, ter encontrado em uma aldeia o corpo de uma mulher indígena amarrado de ponta-cabeça e partido ao meio, longitudinalmente, provavelmente a golpes de facão.
“Desaparecido” (ora, ora) por 45 anos (a explicação oficial é que fora destruído em um incêndio no Ministério da Agricultura), o documento foi achado em uma gaveta ou prateleira do Museu do Índio no Rio de Janeiro, vindo a público em 2013. Figueiredo, morto aos 53 em um nebuloso acidente de ônibus, nunca viu sua investigação ter desdobramento.
E como não temos vergonha na cara nem autoestima na alma, nunca passamos essa página a limpo.
*Artigo publicado no Jornal A Tarde, versão impressa, em 12 de abril de 2022.
*Ludmilla Duarte é Jornalista, Especialista em Direitos Humanos, mestre em Política Pública e Administração pela Adler University (Vancouver, Canadá) e doutoranda em Política Ambiental na Universidade de Nairobi (Quênia). Email: [email protected]