ECA: 30 anos depois, sociedade segue falhando em proteger a infância

Os altos números de crianças e adolescentes em situação de rua, que são alvo de violência ou estão fora da escola forçam sociedade e Poder Público a admitir que fracassam no cumprimento do ECA
Direitos da infancia e juventude brasileiras seguem ignorados 30 anos depois da entrada em vigor do ECA (Foto: Nappy)

As crianças de hoje formarão a sociedade do futuro, certo?

E se você acredita que infância é assunto sério, certamente também leva a sério a legislação mais completa, minuciosa e importante de proteção a essa camada da nossa sociedade: o Estatuto da Criança e do Adolescente – muito referido por seu apelido, ECA.

Este blog leva o tema muito a sério.

Tão a sério que você irá acompanhar aqui uma série de artigos informando sobre os direitos contidos nessa lei que já é trintona, mas que ainda está longe de ser aplicada como deve e como precisa. Afinal, um país que não cuida de sua população infantil está sendo negligente com seu presente e inconsequente em relação ao seu futuro. Concorda?

Abordei alguns dos principais aspectos do ECA em minha palestra para a Associação Recriar, uma organização não-governamental que desde 2005 atua no Largo do Papagaio (bairro da Ribeira, na Cidade Baixa de Salvador) acolhendo crianças, adolescentes e suas famílias.

O Centro Social Comunitário Recriar é um espaço receptivo e vibrante que oferece inclusão digital, iniciação musical, atendimento psicossocial e familiar, oficinas para adultos.

Se você quer conhecer, saber como ajudar, se voluntariar ou doar, escreva para [email protected], ou clique aqui.

Infância e juventude: os números

De acordo com a a última estimativa do IBGE, divulgada pelo Unicef, o Brasil possui perto de 54 milhões de habitantes com menos de 18 anos no bojo de sua população total de 210,1 milhões de pessoas (números de 2019).

Mas dados apurados por Organizações Não-Governamentais e outros institutos oficiais, como o IPEA, revelam que um contingente ainda muito grande dessas crianças e adolescentes está longe de usufruir das garantias e da proteção integral estabelecida pelo ECA.

A ONG Visão Mundial, por exemplo, estima em 70 mil o número de crianças e adolescentes atualmente em situação de rua.

E isso significa não só que a sociedade brasileira desrespeita o ECA no sentido de negar a esses meninos e meninas o acesso a educação, a moradia e a alimentação, mas também a outros direitos básicos como higiene, proteção contra violência, convivência familiar, acesso a lazer, esporte, cultura.

Outra estimativa triste diz respeito a violência sexual: 68% das vítimas são crianças e adolescentes, segundo o dado mais recente do Atlas da Violência.

Em 2017, o Unicef levantou que havia nada menos que 2,8 milhões de meninos e meninas de menos de 18 anos fora das escolas; e o IPEA alerta para a gravidade de uma situação muito atual: 45 mil crianças e adolescentes perderam o pai e a mãe para o coronavírus – e passam, pois, a ficar sob os cuidados de familiares próximos ou sob a tutela do Estado.

O ECA

Agora, vamos falar sobre o ECA, o compilado de leis promulgadas para criar e proteger os direitos de todos os brasileiros que têm menos de 18 anos. Mas como o rol é muito extenso – são 267 artigos e centenas de incisos – neste texto vamos descrever um espectro básico de direitos, e abordar mais tópicos em artigos futuros, ok?

Caracterização – O ECA estabeleceu que crianças são aquelas com até 12 anos incompletos, e os adolescentes têm de 12 a 18 anos.

Todos nessas faixas etárias – sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem – todos, enfim, têm o direito de usufruir de desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e de dignidade.

E o dever legal de lhes garantir esse desenvolvimento é não apenas da família: é também da comunidade, da sociedade em geral e do poder público.

Assim, toda vez que uma criança ou adolescente deixa de usufruir dos direitos que o ECA lei lhes assegura, é nossa responsabilidade cobrar que isso seja corrigido – usando todos os meios disponíveis, inclusive o judicial.

Negligência, exploração, violência

O ECA estabelece categoricamente que nenhuma criança ou adolescente pode ser alvo de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão. E que qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais, deve ser punido.

É obrigação de todo cidadão, conforme o artigo 13 do ECA, comunicar ao Conselho Tutelar mais próximo qualquer suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente – e isso sem prejuízo de outras providências legais.

O Cadastro Nacional dos Conselhos Tutelares é uma publicação organizada por estado onde você pode buscar os contatos em sua cidade.

O artigo 18 do ECA reforça que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

O mesmo artigo frisa que a criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto.

E isso vale para os pais, para os integrantes da família ampliada, os responsáveis, agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.

Ainda no quesito violência ou negligência, o ECA determina que é obrigação também dos dirigentes de escolas de ensino fundamental comunicar ao Conselho Tutelar as suspeitas de maus-tratos envolvendo seus alunos, reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar – esgotados os recursos escolares -, ou quando a criança apresentar elevados níveis de repetência.

Trabalhar, pode? Bem, depende…

É proibido qualquer trabalho a menores de 14 anos de idade, salvo na condição de aprendiz.

E o que é aprendizagem?

Aprendizagem, determina o ECA, é a formação técnico-profissional ministrada segundo as diretrizes e bases da lei de educação em vigor.

Essa formação técnico-profissional tem que obedecer aos seguintes princípios: garantia de acesso e freqüência obrigatória ao ensino regular; atividade compatível com o desenvolvimento do adolescente; horário especial para o exercício das atividades.

Se o adolescente tem até 14 anos de idade, ele deve ser remunerado por meio de uma bolsa de aprendizagem. Já o adolescente aprendiz maior de 14 anos precisa ter seus direitos trabalhistas e previdenciários respeitados pelo empregador.

Mas é proibido empregar o adolescente para jornadas noturnas (entre 22h e 5h), para atividades perigosas, insalubres ou penosas; em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social; em horários e locais que impeçam a frequência à escola.

Apadrinhamento, um instrumento recente

Uma possibilidade interessante e recente, incluída no ECA pela lei nº 13.509/2017, é a do apadrinhamento de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade – e ele vale tanto para pessoas físicas como para empresas.

E o que significa apadrinhar?

Significa estabelecer e proporcionar à criança e ao adolescente vínculos externos à instituição para fins de convivência familiar e comunitária e colaborar com o seu desenvolvimento nos aspectos social, moral, físico, cognitivo, educacional e financeiro.

Podem ser padrinhos ou madrinhas pessoas maiores de 18 (dezoito) anos não inscritas nos cadastros de adoção, desde que cumpram os requisitos exigidos pelo programa de apadrinhamento de que fazem parte. E pessoas jurídicas podem apadrinhar criança ou adolescente a fim de colaborar para o seu desenvolvimento.

O perfil da criança ou do adolescente a ser apadrinhado será definido no âmbito de cada programa de apadrinhamento, mas deve ser dada prioridade para crianças ou adolescentes com remota possibilidade de reinserção familiar ou colocação em família adotiva.

Com base nesse novo dispositivo legal, alguns tribunais de justiça do país já criaram programas de apadrinhamento, como os de São Paulo, Pará, Rio de Janeiro e Amapá; o Ministério Público do Paraná, a prefeitura de Bauru (SP); as ONGs Acalanto (de Fortaleza/CE), Aconchego (DF), Instituto Fazendo História (SP), entre outras.

Dicas:

Em Cartilhas e Manuais deste blog você pode acessar a ficha de notificação de violência doméstica e encaminhar sua denúncia de maus-tratos contra crianças e adolescentes ao Conselho Tutelar mais próximo ou aos canais de denúncia anônima do Governo Federal.

Campanha Estatuto da Criança e do Adolescente – 30 anos (Unicef): material informativo gráfico bastante interessante e para todas as idades.

Capitães da Areia: o clássico de Jorge Amado, escrito na década de 1940, é uma obra-prima que, para o bem e para o mal, segue atual nos dias de hoje.

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