No Quênia, onde a homoafetividade é criminalizada, a UN-Globe quebrou silêncio e promoveu evento pelo Dia Internacional Contra a Homofobia, Bifobia, Intersexfobia e Transfobia
Ainda nos dias de hoje, 69 países têm leis que criminalizam a homoafetividade — e quase metade deles está na África.
Entre os países que punem severamente a união entre casais do mesmo gênero está o Quênia, que em sua capital abriga o centro de operações da ONU na África, estabelecido em 1996, e também sedia dois programas: o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat).
Pelo Código Penal do Quênia, ser lésbica, gay, bissexual ou transgênero é cometer crime de sodomia de acordo com a Seção 162; e quaisquer práticas sexuais (consideradas “atentado violento ao pudor”) são crimes nos termos da seção 165 do mesmo estatuto.
A Seção 162(a) e (c) do Código Penal diz que é crime qualquer pessoa ter “conhecimento carnal de qualquer outra pessoa contra a ordem da natureza” ou permitir que “um homem tenha conhecimento carnal dele ou ela contra a ordem da natureza”. A conduta é punível com 14 anos de prisão.
A Seção 165 do Código Penal diz que é crime um homem cometer “qualquer ato de atentado violento ao pudor com outro homem”, seja em público ou em privado, conduta punível com 5 anos de prisão.
Uma petição apresentada em 2016 por três organizações quenianas que trabalham para proteger os direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros endereçou o debate do combate acerca criminalização da conduta entre pessoas do mesmo sexo ao Supremo Tribunal do Quênia, e defendeu que tais dispositivos penais atentariam contra a dignidade humana, segurança, privacidade e saúde, todos protegidos pela constituição do Quênia.
Na contramão do combate à Homofobia, Bifobia, Intersexfobia e Transfobia, e da busca por igualdade de gênero, em 24 de maio de 2019, o Supremo Tribunal do Quênia recusou uma ordem para declarar as seções 162 e 165 inconstitucionais.
Três magistrados da Corte (juízes Aburili, Mwita e Mavito) emitiram um voto unânime no sentido de que a lei que criminaliza a conduta sexual entre pessoas do mesmo sexo não viola a Constituição, sentenças proferidas nos casos EG & 7 Others v the Attorney General; DKM & 9 Others v the Attorney General (Petitions 150 & 234 of 2016).
Consta das razões da sentença judicial do Supremo Tribunal queniano que:
“Em nossa opinião, descriminalizar o sexo entre pessoas do mesmo sexo com base no fato de que é consensual e feito em privado entre adultos contradiz as disposições expressas do artigo 45(2). O argumento dos peticionários de que não estão buscando permissão para entrar em nosso ponto de vista, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é irrelevante, uma vez que, se permitido, levará pessoas do mesmo sexo a viverem juntas como casais. Tais relacionamentos, sejam privados ou não, formais ou não, violariam o teor e o espírito do a Constituição.”
(…)
O Tribunal considerou que:
“Descriminalizar as disposições impugnadas abriria indiretamente a porta para uniões entre pessoas do mesmo sexo.”
Infelizmente, fora das cortes judiciais, na esfera do poder executivo, o governo do Quênia também continua adotando uma postura ambivalente em relação aos direitos LGBTQIAPN+.
O ex-presidente Uhuru Kenyatta referiu-se à homoafetividade como “inaceitável” em uma entrevista à mídia em 2018, mas disse anteriormente que não toleraria “caça às bruxas” anti-LGBTQIAPN+ nem outras formas de violência.
O Quênia aceitou uma recomendação do Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2015 para adotar legislação que proíbe a discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero, consistente com as garantias constitucionais de não discriminação, mas essa legislação não foi aprovada.
O atual presidente William Ruto e a primeira-dama mantiveram dura posição e críticas aos relacionamentos afetivos entre pessoas do mesmo sexo. A primeira-dama Rachel Ruto conclamou por “orações nacionais contra a homossexualidade no país”, declarando a prática como “uma ameaça à instituição da família”.
Quebrando o silêncio
Foi nesse contexto que, com a iniciativa do UN-Globe, a ONU resolveu quebrar o silêncio e promover, em 17 de maio de 2023, um evento em conscientização do Dia Internacional Contra a Homofobia, Bifobia, Intersexfobia e Transfobia (IDAHOBIT), realizado de maneira presencial no escritório da ONU localizado em Nairóbi, capital do Quênia.
No convite oficial direcionado aos funcionários e servidores da ONU, Estados-membros e sociedade civil, a UN-Globe justificou a realização do evento como importante e necessário para a reafirmação dos princípios basilares defendidos pela organização internacional:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Assim diz o artigo 1º do Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Ou, em outras palavras; todos nós temos os mesmos direitos humanos inalienáveis. Você, eu, todos – sem exceções.
Apesar da bela promessa da Declaração Universal, a realidade da vida diária de muitos de nós fica aquém. Em todo o mundo, as pessoas enfrentam violência, estigma e discriminação – com base pela cor da pele, porque vivem com deficiência, pela idade, porque de seu gênero, pelo que acreditam ou porque são gays, lésbicas, bi, trans ou intersexo.
Consagrada na Declaração Universal está uma crença profundamente arraigada de que um mundo diferente é possível. Mas só é possível se todos estivermos juntos. Se cada um de nós insiste que nossa liberdade está unida – que ninguém é livre até que todos sejamos livres.
Um mundo livre e igualitário é possível.
UNGLOBE convida todos os funcionários das Nações Unidas e a comunidade diplomática no Quênia que tem manifestou interesse, para se reunir e observar o Dia Internacional Contra Homofobia, Bifobia, Lesbofobia e Transfobia (IDAHOBIT) em 17 de maio para aumentar consciência das violações dos direitos LGBTIQ+ e estimular o interesse no trabalho dos direitos LGBTIQ+ no Nações Unidas, no Quênia e no mundo.
Decidido durante uma ampla consulta com organizações LGBTIQ+ de todo o mundo, o tema “Juntos sempre: unidos na diversidade” permitirá a advocacia e as comemorações em muitas formas – sejam elas de defensores dos direitos humanos, grupos da sociedade civil LGBTIQ+, milhões de pessoas em nossas comunidades e nossos aliados.
Em um momento em que avanços duramente conquistados para as comunidades LGBTIQ+ em todo o mundo são cada vez mais ameaçados, o poder da solidariedade, aliança e comunidade entre identidades, fronteiras e movimentos nunca foi tão necessário.
No complexo da ONU, em Nairóbi, país onde as relações afetivas entre pessoas do mesmo gênero ainda são criminalizadas, a ONU-Globo promoveu um evento para conscientização do Dia Internacional Contra a Homofobia, Bifobia, Intersexfobia e Transfobia (IDAHOBIT), estabelecido pela ONU para ser celebrado em 17 de maio.
Os coordenadores do UNGLOBE representando o UNGLOBE para PNUD, ONU-Habitat e o centro de operações da ONU na África, deseja transmitir a todos os funcionários, contratados e diplomatas no complexo de Nairóbi participar de um evento para se inspirar, motivar e se engajar na causa da liberdade, dignidade, igualdade e diversidade”. (Convite oficial da UNGLOBE para o evento)
Como palestrantes a cerimônia contou com a participação de Zainab Bangura, Diretora Geral da UNON, Inger Andersen, Diretora-Executiva do PNUMA, Michal Mlynar, Diretor-Executivo Adjunto do ONU-Habitat, Stephen Jackson, Coordenador-Geral do Sistema ONU no Quênia, e de Machteld Cattrysse, Ministra-Conselheira da Embaixada da Bélgica, e Silvio José Albuquerque e Silva, Embaixador do Brasil no Quênia e Representante Permanente junto à ONU-Nairóbi.
Representando a delegação brasileira, Silvio Albuquerque, ex-integrante do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas, afirmou que “este não foi mais um dos eventos protocolares das Nações Unidas marcados por longos discursos repletos de boas intenções, exuberância retórica e algum grau de descompasso com a realidade. Sendo Nairobi uma das sedes da ONU, a única no Sul Global, a data de hoje revelou-se dotada de simbolismo solidamente ancorado na realidade, tendo em vista que o Quênia é um dos mais de 60 países do mundo que ainda criminalizam as condutas homoafetivas”.
O Embaixador do Brasil apontou que a Constituição da República Federativa do Brasil e a melhor jurisprudência brasileira, regional e internacional forneceram-lhe as bases legais para seu discurso no evento.
“Tratei de demonstrar a primazia da defesa dos direitos humanos na política externa brasileira, com ênfase na promoção da diversidade e da inclusão, dimensões devidamente valorizadas pela atual Administração do Itamaraty e pelo atual governo do Brasil. Minhas palavras refletiram a convicção da prevalência na ordem internacional de um conjunto de valores irrenunciáveis e não passíveis de tutela restritiva pelo Estado, a menos que se ignore toda a evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos desde 1948. Trata-se de direitos da personalidade inerentes à pessoa humana, isto é, que nascem e morrem com a pessoa. São direitos associados à noção de individualidade, liberdade e dignidade humana, dentre os quais a liberdade de orientação sexual e identidade de gênero”.
Eis a íntegra do seu discurso traduzido para a língua portuguesa:
“É quase inevitável viver momentos de desencanto nos dias de hoje diante dos níveis crescentes de intolerância em todo o mundo. Nessas ocasiões, penso em muitas pessoas cujas vidas poderiam trazer alguma ordem em meio ao caos.
Em 2019, durante cerimônia realizada no Congresso Brasileiro para comemorar os 50 anos dos motins de Stonewall, Daniela Mercury, uma das maiores cantoras do Brasil, disse algo que ecoou além do austero espaço cercado pelos muros do nosso Congresso: ‘Precisamos de muitas rebeliões, muitos Stonewall, um movimento contínuo da sociedade para que a democracia se efetive e iguale os direitos de todos”.
Pode-se interpretar suas palavras de várias maneiras. São um apelo à continuidade das ações sociais para que não se percam direitos em tempos normais ou caóticos. A importância histórica dessas ações disruptivas decorre do fato de que símbolos como a recusa de Rosa Parks em ceder seu assento aos racistas, em Montgomery, Alabama, em 1955, e Stonewall, em 1969, são cruciais para os movimentos sociais ao mobilizar e movimentar a cidadania discurso das margens políticas para o centro do palco.
Devemos resistir à fantasia conservadora baseada na falsa suposição de que as identidades humanas são meramente escolhidas, tornando-nos todos livres para ser o que escolhemos ser. Nunca percamos de vista o fato de que existem 8 bilhões de pessoas neste planeta. Nossas identidades individuais são múltiplas e não necessariamente se encaixam no conjunto particular de bases rígidas artificialmente estabelecidas por alguns.
Na realidade, as identidades só funcionam porque, uma vez aderidas a nós, falam a cada um de nós com uma voz interior. Acima de tudo, as identidades tendem a estar associadas a nós porque os outros, imaginando que sabem quem somos, nos chamam e pré-julgam todos e cada um de nós.
O direito à igualdade e a proibição da discriminação foram consagrados pela Declaração Universal de 1948 e pelos Pactos Internacionais sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O Comitê de Direitos Humanos da ONU já deixou claro que o princípio da não discriminação é condição e pré-requisito para o pleno exercício dos direitos humanos.
O maior desafio é expandir, otimizar e densificar a força catalisadora da jurisprudência protetora global e regional. O ponto de partida é a convergência —endossada por Comitês da ONU e Tribunais Regionais de Direitos Humanos — de que a igualdade e a proibição da discriminação constituem cláusula passível de inclusão do critério de orientação sexual. Consequentemente, a orientação sexual não pode justificar a restrição, limitação e redução dos direitos humanos.
Em junho de 2013, os Estados membros da OEA adotaram a Convenção Interamericana contra Todas as Formas de Discriminação e Intolerância, o primeiro documento internacional juridicamente vinculativo a condenar expressamente a discriminação com base na orientação sexual, identidade e expressão de gênero.
Fui o diplomata responsável pela elaboração da primeira minuta desta Convenção, como primeiro Presidente do Grupo de Trabalho responsável pela negociação do tratado. Estou tão orgulhoso disso. O tratado está em vigor internacional desde 20 de fevereiro de 2020, graças à ratificação do Uruguai e do México. O Brasil o assinou em 2013, mas ainda não o ratificou.
No ano passado, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas adotou uma resolução para renovar o mandato do Especialista Independente em proteção contra violência e discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero por mais três anos. Criado em 2016, o Independent Expert foi apoiado por um grupo central de sete países latino-americanos – Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, México e Uruguai – e foi co-patrocinado por 60 países de todas as regiões.
Senhor Presidente,
Senhoras e senhores,
Ao tomar a palavra como Embaixador do Brasil, não posso deixar de utilizar minhas circunstâncias e afinidades eletivas que me vinculam à defesa dos direitos humanos e ao combate a toda forma de discriminação. Eu encontro inspiração na vida corajosa de muitos brasileiros, irmãs e irmãos da comunidade LGBTQIA+ em qualquer lugar, inclusive dentro do sistema da ONU, que passaram por muitos desafios sem serem ouvidos ou notados.
Quero parafrasear o Ministro dos Direitos Humanos do Brasil, Silvio Almeida, e afirmar alto e bom som que suas vidas importam para o governo e para o povo brasileiro. As pessoas cujos sofrimentos e ações imerecidas geraram crises e precipitaram mudanças merecem crédito porque, no final, vocês estão lutando pelo direito de todos serem respeitados como expressão da riqueza da diversidade humana.
Se você me perguntar se estou otimista com os resultados de um evento como o que estamos participando hoje, eu diria que estou esperançoso. Certa vez, Cornel West traçou uma nítida distinção entre otimismo e esperança. “O otimismo para mim nunca foi uma opção. Porque há muito sofrimento no mundo… mas a esperança é outra coisa, porque a esperança é prospectiva. É participativa. Esperançar é tanto um verbo quanto uma virtude. A esperança é tanto uma consequência de sua ação quanto uma fonte de sua ação.
Sou grato a S. E. a Sra. Zainab Bangura, Diretora Geral da UNON, por criar a oportunidade para nos unirmos sob a expectativa legítima de que, coletivamente, construiremos uma rota de fuga do labirinto de escuridão visto em tantos lugares.
Martin Luther King Jr. usou muitas vezes uma metáfora que sempre achei inspiradora: “cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança”. Para ele, a única forma de vencer nessa empreitada era por meio do amor – sabendo, o que não é o mesmo que entender, que tudo o que acontece com qualquer um também acontece conosco. É precisamente por isso que estamos aqui hoje.”
O Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia foi criado em 2004 para chamar a atenção para a violência e a discriminação sofridas por lésbicas, gays, bissexuais, trans, intersexuais e todos aqueles com diversas orientações sexuais, identidades ou expressões de gênero, e características sexuais.
Inicialmente gerenciada pelo Comitê IDAHO, a iniciativa agora é gerenciada coletivamente em colaboração entre redes regionais e temáticas que trabalham para promover os direitos de pessoas com diversas orientações sexuais, identidades ou expressões de gênero e características sexuais. Essa colaboração reúne organizações e iniciativas nos níveis global, regional, nacional e local.
O Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia é celebrado atualmente em mais de 130 países, incluindo 37 onde a homoafetividade e a fluidez de gênero são ilegais. Milhares de iniciativas, grandes e pequenas, são relatadas em todo o planeta.
O Dia Internacional tem recebido reconhecimento oficial de diversos Estados, instituições internacionais como o Parlamento Europeu e de inúmeras autoridades locais. A maioria das agências das Nações Unidas também marca o Dia com eventos específicos, como a da UN-Globe na UN-Habitat.
O evento emocionou a plateia com os depoimentos não apenas de esperança e de fomento a ações por mudanças, como também experiências apaixonadas e emocionadas individuais de cada palestrante. A UN-GLOBE, ao nosso ver, cumpriu o seu papel para defender a equidade e a inclusão do pessoal LGBTQIAPN+ no sistema da ONU e em suas operações de manutenção da paz.
O UN-Globe é administrado por um Conselho de voluntários da ONU eleitos a cada dois anos pelos membros do UN-GLOBE, e é apoiado por uma forte rede de voluntários da ONU e coordenadores de postos de trabalho. Seus membros desempenham um papel igualmente importante: eles compartilham suas experiências com seus coordenadores, apoiam seus capítulos UN-GLOBE oferecendo tempo voluntário e trazem visibilidade ao trabalho que fazemos.