Dia da Criança: precisamos falar sobre trabalho infantil

De acordo com a ONU, o trabalho infantil traz prejuízo mental, físico, social e moral; interfere na escolarização, impede frequência às aulas e a concentração
Brasil já tinha 1,758 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 em situação de trabalho infantil antes da pandemia, sendo que 706 mil vivenciavam suas piores formas (foto: Samantha Sophia/Unsplash)

Presentear os pequenos que amamos é bom, mas a reflexão que proponho para o 12 de Outubro é esta: toda a sociedade é responsável por aquela parcela vulnerável de seus integrantes chamada infância e juventude.

E não sou eu quem estou dizendo, é a nossa legislação.

Isso significa que enquanto tivermos meninos e meninas fora da escola, sofrendo violência, em situação de rua ou trabalhando fora dos limites estritamente estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a culpa é muito de cada um de nós.

E neste Ano Internacional de Erradicação do Trabalho Infantil, estabelecido pela ONU, as notícias não são nada boas.

O número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil chegou a 160 milhões em todo o mundo – um aumento de 8,4 milhões de meninas e meninos entre 2016 e 2020.

E pode piorar, pois outros 8,9 milhões correm o risco de ingressar nessa situação até 2022 devido aos impactos da Covid-19. A constatação está no novo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Embora o documento não tenha trazido dados específicos sobre o Brasil, os números da Pnad Contínua 2019, os mais recentes disponíveis, constataram que 1,758 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos estavam em situação de trabalho infantil no Brasil antes da pandemia.

Desses, 706 mil vivenciavam as piores formas de trabalho infantil.

E quais são elas?

São aquelas listadas no decreto 6.481/2008, que aprovou a a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP) resultante da convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Essa lista inclui desde o trabalho doméstico (ao qual são forçadas milhares de meninas) até o beneficiamento do fumo, sisal, castanha de caju e cana-de-açúcar.

Abarca ainda atividades de pulverização, manuseio e aplicação de agrotóxicos; fabricação de fogos de artifícios; atividades em indústrias cerâmicas e nos fornos das olarias. No total, são 93 tipos de ocupação insalubres ou perigosas das quais deveríamos manter afastadas nossa infância e juventude.

E o recorte racial do levantamento confirma aquilo que parcela da sociedade teima em não reconhecer: do contingente em trabalho infantil no Brasil em 2019, 66,1% eram garotos e garotas pretos ou pardos.

Os números não incluem adolescentes que trabalhavam legalmente por meio do sistema de aprendizagem admitido por nossa legislação.

O que diz, exatamente, nossa legislação a esse respeito?

A lei 8.069/1990, mais referida como ECA, determina que é proibido qualquer trabalho a menores de 14 anos de idade, salvo na condição de aprendiz.

E o que é aprendizagem?

Aprendizagem, determina o ECA, é a formação técnico-profissional ministrada segundo as diretrizes e bases da lei de educação em vigor.

Essa formação técnico-profissional tem que obedecer a alguns seguintes princípios. Entre eles, estão a garantia de acesso e freqüência obrigatória ao ensino regular; atividade compatível com o desenvolvimento do adolescente; horário especial para o exercício das atividades.

Se o adolescente tem até 14 anos de idade, deve-se remunerá-lo por meio de uma bolsa de aprendizagem. Já o adolescente aprendiz maior de 14 anos precisa ter seus direitos trabalhistas e previdenciários respeitados pelo empregador.

Mas é proibido empregar o adolescente para jornadas noturnas (entre 22h e 5h), para atividades perigosas, insalubres ou penosas; em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social; em horários e locais que impeçam a frequência à escola.

E o artigo 69 do ECA reforça que o adolescente tem direito à profissionalização e à proteção no trabalho, observados os seguintes aspectos: respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e capacitação profissional adequada ao mercado de trabalho.

Ferimentos, amputações e mortes

A desobediência à lei nacional tem consequências graves para a nossa população de crianças e adolescentes.

Um levantamento do Ministério Público do Trabalho de São Paulo, por exemplo, registrou a ocorrência naquele estado de 8,4 mil acidentes de trabalho infantil envolvendo crianças de cinco anos a adolescentes de 17 no período de 2012 a 2020. A média é de 933 casos anuais, ou dois acidentes a cada cinco dias.

Na região metropolitana de São Paulo, foram 2,6 mil acidentes considerados graves. O conceito de gravidade, segundo o MPT/SP, inclui exposição a materiais biológicos, câncer relacionado ao trabalho, intoxicação, perda auditiva causada por ruído, transtornos mentais causados pelo trabalho, e LER/DORT (Lesões por Esforços Repetitivos e Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho).

Os dados do Sistema Nacional por Agravo de Notificações (Sinan) do Ministério da Saúde também são dramáticos.

Entre 2007 e 2016, o sistema registrou que 22.349 crianças e adolescentes de 5 a 17 anos sofreram acidentes graves enquanto trabalhavam. E 200 morreram em consequência desses acidentes.

Mais: 552 crianças e adolescentes tiveram a mão amputada enquanto trabalhavam, 4.264 crianças sofreram algum tipo de ferimento, 994 tiveram fraturas do punho e da mão e 631 registraram traumatismos no tornozelo e nos pés.

De acordo com a ONU, o trabalho infantil prejudica as crianças mentalmente, fisicamente, socialmente e moralmente. Interfere na escolaridade, impedindo-os de frequentar as aulas e de se concentrar. Pode envolver a escravidão, a separação de suas famílias e a exposição a perigos e doenças graves.

Ainda segundo a ONU, quase metade do trabalho infantil do planeta ocorre na África (72 milhões de crianças), seguida pela Ásia e Pacífico (62 milhões). 70% das crianças nessa situação trabalham na agricultura, principalmente na agricultura de subsistência e comercial, e na pecuária.

O que nós podemos fazer?

Como eu disse anteriormente, a infância e a juventude são um problema de todos – o que inclui Poder Público, sociedade, indivíduos e empresas.

O artigo 18 do ECA é claro: “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.

E há vários ações que qualquer cidadão comum pode adotar.

  • Denuncie

O Poder Público tem que cumprir a lei, e há vários canais disponíveis para acioná-lo, que podem ser usados tanto de forma identificada como anônima.

Um deles é o Conselho Tutelar.

Aliás, é obrigação de todo cidadão, conforme o artigo 13 do ECA, comunicar ao Conselho Tutelar mais próximo qualquer suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente. E isso sem prejuízo de outras providências legais.

O Cadastro Nacional dos Conselhos Tutelares é uma publicação organizada por estado onde você pode buscar os contatos em sua cidade.

Outro canal é o Ministério Público do Trabalho, que recebe denúncias online sobre trabalho infantil. Basta clicar no ícone denuncie e selecionar seu estado.

O Tribunal Superior do Trabalho também possui uma página para envio de denúncias.

O Governo Federal possui canais de denúncia anônima que também podem ser usados para registrar a ocorrência de trabalho infantil ilegal.

  • Aja!

Há muitas maneiras de agir para ajudar a erradicar o trabalho infantil, além da denúncia.

Uma possibilidade interessante e recente, incluída no ECA pela lei nº 13.509/2017, é a do apadrinhamento de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. E ele pode ser feito tanto por pessoas físicas como por empresas.

E o que significa apadrinhar?

Significa estabelecer e proporcionar à criança e ao adolescente vínculos externos à instituição para fins de convivência familiar e comunitária e colaborar com o seu desenvolvimento nos aspectos social, moral, físico, cognitivo, educacional e financeiro.

Podem ser padrinhos ou madrinhas pessoas maiores de 18 (dezoito) anos não inscritas nos cadastros de adoção, desde que cumpram os requisitos exigidos pelo programa de apadrinhamento de que fazem parte.

E pessoas jurídicas podem apadrinhar criança ou adolescente a fim de colaborar para o seu desenvolvimento.

O perfil da criança ou do adolescente a ser apadrinhado será definido no âmbito de cada programa de apadrinhamento, mas deve ser dada prioridade para crianças ou adolescentes com remota possibilidade de reinserção familiar ou colocação em família adotiva.

Então, que tal incentivar a empresa na qual você trabalha a, por exemplo, custear os estudos de crianças e adolescentes vulneráveis?

Com base nesse novo dispositivo legal, alguns tribunais de justiça do país já criaram programas de apadrinhamento, como os de São Paulo, Pará, Rio de Janeiro e Amapá; o Ministério Público do Paraná, a prefeitura de Bauru (SP); as ONGs Acalanto (de Fortaleza/CE), Aconchego (DF), entre outras.

Para saber mais sobre os direitos da infância e juventude brasileiras previstos no ECA, leia este outro artigo do meu blog.

Dicas:

Muito instrutivo o video Meia Infância – o trabalho infantil no Brasil de hoje

Cartilha Trabalho Infantil – Identifique, Denuncia, Encaminhe.

Cartilha Aprendizagem – Guia prático valorizando o jovem aprendiz

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